(...) Depois que meu avô faleceu sua biblioteca
ficou aos cuidados da academia de letras da cidade. Em uma caixa de papelão um
segredo estava selado. A caixa foi lacrada com fitas adesivas. Na lateral da
caixa um pincel atômico proclamava um decreto: “Reservado.” “Não abra”. A
curiosidade sobre o conteúdo da caixa ganhou o contorno de muitas lendas. De
lendas e do mistério. Meu pai e meus tios decidiram manter a caixa fora do
acervo da biblioteca. Tio George era um solteirão de meia idade. Disseram que
ele seria o guardião daquele tesouro. E assim foi. Francisco estava morando em
São Paulo quando o tio George ligou. A conversa que se seguiu não podia ser
mais insólita. Em um sonho tio George viu quando o vovô apareceu-lhe saindo de
um elevador. Ele estava no saguão de um templo em ruínas. Tio George conta que
numa parede lateral havia uma porta que dava acesso a um elevador. Ele havia
apertado o botão de chamada quando o elevador parou no térreo. Meu avô usava um
terno de gala, um fraque que comportava colete e gravata borboleta. Tinha nas
mãos a caixa lacrada. Como um ato de grande solenidade entregou-a ao tio
George. Tudo em silêncio. Naquele momento, sem nenhuma palavra, nenhum som,
George disse ter a certeza que seria eu o novo guardião. Pouco mais de vinte
dias e a caixa estava sendo entregue em meu endereço. Tio George teve o cuidado
de revesti-la com um novo papel. Queria precaver algum acidente. Júlia entendia
que eu devia abrir o volume. Tinha a outorga para conhecer seu conteúdo. Se eu
era o destinatário isto devia fazer algum sentido. Fui invadido por um temor
ancestral. “A Caixa de Pandora”. As palavras gravadas com o pincel atômico
ganharam vida. “Não Abra”. Era uma ordem. Meu avô agora era um leão e sua voz
um rugido imperativo. Guardei o volume em meu escritório. No fundo eu esperava
que meu pai ou algum tio passasse uma orientação. E como estava a caixa ficou.
Viajando nestas lembranças Francisco pouco se deu conta do seu destino. Tinha
saído com o sol em direção a Pirapora. Júlia combinara visitar suas amigas de
infância. Sem correria cobríamos a distância em pouco mais de três horas. No
inverno a temperatura ficava mais suportável. Agora fazia pouco mais de 22
graus. No passado já havíamos pegado temperaturas de 45 graus. Esta é ainda uma
região histórica para o rio São Francisco. Suas glórias estão em muitas marcas
da cidade. Sua história está em seu passado. Na memória de um leito que padecia
do descaso. Que predadores carregamos em nossa alma capaz de tanta destruição?
O leito do nosso próprio corpo. Depois do almoço na casa de Helena o sono veio
para abrandar nosso cansaço. A noite a conversa correu solta. Logo éramos um
grupo, eu e dez mulheres. Todas já tinham passado dos cinquenta anos. Havia
muita história naquela varanda. A cerveja gelada e os tira gostos eram
desculpas desnecessárias. A generosidade e fraternidade era tamanha que nos
bastava como qualquer forma de alimento. Mulheres guerreiras que contavam os
desafios do cotidiano com a intensidade de um gladiador. Foi então que ouvi
pela primeira vez a história de um templo em ruínas construído no final do
século XVII. Ficava a trinta quilômetros dali. Era um feito do bandeirante
Fernão Dias. O nome da região, Barra do Guaicui, nas margens do rio das Velhas.
Conhecer este local ganhou em mim um sentido quase obsessivo. Ali abrigavam-se
respostas para muitas inquietações. Combinamos para o dia seguinte, depois do
café. Foi uma noite de tumultos. Primeiro uma insônia que me consumiu até às
duas horas da manhã. O sono chegou ruidoso. Imagens sobrepunham-se com a
vertigem de um tobogã. Rostos conhecidos e desconhecidos perfilavam sem compor
qualquer sentido. Repentinamente ganhavam outras formas ou se decompunham como
pastos para os abutres. Eram cinco horas quando decidi levantar, buscando em um
banho frio o resgate de minha sanidade. No caminho Helena foi contando detalhes
com o esmero de uma professora. Ninguém tem certeza do que é história e o que é
lenda. Mas as ruínas da igreja estão bem aqui, com toda sua imponência. Isto
todos podemos ver. Helena apontou em direção a uma antiga construção,
entranhada nas raízes de uma frondosa árvore. Nosso carro tinha que seguir
agora por um estreito caminho. Mas já podíamos ver um extenso trecho do rio das
Velhas. Estávamos no centro da barra do Guaicui, no município de Várzea da
Palma. Este é um ponto de entroncamento com o rio São Francisco. No século XVII
o bandeirante Fernão Dias percorria a região a procura de pedras preciosas. Ele
teria mandado construir uma igreja de pedra, que ficou inacabada em decorrência
de uma peste que dizimou parte de sua expedição. Pouco tempo depois Fernão Dias
morreu de malária. Helena parou um instante para recuperar o fôlego. Paramos
nosso carro em um pequeno platô lateral. Seguimos a pé. Era impossível não nos
rendermos a este cenário. O rio das Velhas desfraldava-se aos nossos olhos em
toda sua exuberância. Naquela região suas águas eram calmas e profundas. O
barro coloria toda a superfície. Mais à frente ele desaguaria no São Francisco.
Um ato de amor da natureza. Estávamos em solo sagrado. Não porque assim alguém
decidiu. Sagrado porque assim experimentávamos esta dimensão em nosso espírito.
Caminhamos em silêncio. Um pouco mais e agora se revelava o monumento de pedra.
Ruínas de um templo. O acervo natural ainda hoje impressiona. E não é para
menos. Histórias e lendas ganharam a dimensão do mistério na versão acalorada dos
agentes de turismo. Encontrei Tonho, sentado em um banquinho, enquanto um toco
de madeira servia de mesa para suas tarefas. Ele arrumava pequenos mapas e
muitos papéis em uma antiga pasta de couro. Prestativo, deitou falação. Foi
então que Francisco soube que aquelas ruínas eram da igreja do Bom Jesus de
Matosinhos. Agora, há pouco mais de um metro do templo senti como se toda
aquela construção me engolisse. Era como se à minha volta todos tivessem
desaparecido. Um passe de mágica. Impossível descrever toda emoção. O
arrebatamento era verdadeiro. Um intrincado sistema de raízes subia pelas
paredes a uma altura superior a três metros. No topo o colosso verde de uma
árvore abria-se como guarda sol gigante. Encostei-me na lateral de um dos
portais. Sentado em um degrau de pedra deixei-me viajar nas entranhas daquele
cenário. Como por encanto eu me via no interior do sonho do tio George. Não era
apenas um observador. Nenhuma dúvida obstruía meus movimentos. Solenemente meu
avô, em seu traje de gala, fundia-se às raízes da grande árvore desaparecendo
no meio de sua seiva. Solenemente tio George me entregava a misteriosa caixa.
Enfim seria apresentado ao seu conteúdo. Não sei quanto tempo fiquei mergulhado
neste êxtase. Não importa. O desafio de Pandora poderia ser confrontado. Francisco
sentiu um leve toque das mãos de Júlia. Um toque que conferia concretude à
minha certeza. (...)
Trecho do livro: Pegadas na Trilha de Frederico Ozanam Drummond - Agosto de 2017
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