terça-feira, 25 de dezembro de 2018

Capítulo II - Para uma menina de tranças. - (O Guardião da Lenda)

A ousadia misturava-se com um sentimento ingênuo de poder. Teodoro carregava a certeza que o impossível não existia. Podia tudo. Ia mudar o mundo. Nada o afastaria dos seus propósitos. Com o impulso desta determinação eu sairia do interior de Minas para novas pelejas em Belo Horizonte. Eu já tinha decidido fazer o curso de ciências sociais. Confessava minhas certezas em mesa de bar para dois amigos. Entre as garrafas de cerveja tramávamos um contragolpe. O tempo dos militares no poder estava contado. Meu coração adolescente estava preparado para todos os golpes. Naquele sábado foi tudo diferente. Foi a primeira vez que vi Júlia. Ela passou pela minha mesa trajando uma jardineira branca. Duas tranças conferiam ao seu rosto de mulher a doçura de um anjo barroco. Uma troca de olhar teve a força do arrebatamento. Para Teodoro o mundo, de repente, ficou indecifrável. Nós tínhamos praticamente a mesma idade. Projetos de vida diferentes, talvez. Os dias se seguiram procurando um novo dialeto. Afinal este era um desafio de Deus. Impossível sondá-lo. Adão e Eva estavam ali no livro sagrado. Reparti o inusitado com meus companheiros de bar. Eu experimentava uma emoção que me colheu desarmado. Ninguém me disse. Nenhum professor alertou-me. Uma semana depois um novo encontro foi puramente casual. Andamos pela cidade por quatro horas seguidas. Todos os assuntos se atropelavam como se a eternidade pudesse sucumbir no instante seguinte. Depois sentamos em um recanto, sob a proteção de uma frondosa quaresmeira, e conversamos por um tempo que não tinha fim. Júlia também seguiria para Belo Horizonte no próximo ano. Estava dividida entre o curso de psicologia e o de biologia. Mas se encantava com o desafio de ser professora. Teodoro perguntou-lhe pelas suas tranças. Um mimo da mãe. Então ela me perguntou se o meu Deus tinha um rosto. Como assim? Claro que tem. Era o único que eu conhecia dos catecismos. Eu não tinha alcançado a dimensão metafísica de sua pergunta. A indagação, porém não abandonou mais o meu espírito. Porque Deus precisava de um rosto? E porque precisava ser o rosto de um homem de longas barbas brancas? Como alguém tão singela como Júlia podia invadir desta forma minha vida. Um dia Júlia me contou uma história de tal sorte inusitada, que pela primeira vez eu formularia a pergunta que contaminou toda minha existência. Afinal, o que é o real? O que é fantasia? Onde termina um e começa outra. Bem ao seu estilo, Júlia me perguntou do nada se eu acreditava em espíritos. A pergunta era muito bizarra para ser uma pergunta sem propósito. Não era. Ela me disse então que seu avô podia vê-los. Toda minha vida fora aminada por questões políticas. Era fora de propósito comover-me questões, que eu entendia na esfera de crendices. De outra vez me perguntou se eu acreditava em casa mal assombrada. Do tipo que pegava fogo nos armários e caia pedra no telhado.No instante seguinte Júlia apontava para um ipê florido e ficava de tal forma embevecida com seu encantamento que as questões bizarras quedavam em outras paragens. Quando passamos no vestibular o volume das disciplinas cobrava toda nossa atenção. Nas férias do primeiro ano fomos acampar na serra do Cipó. Nossos planos podiam caber na história futura de duas ou três gerações. Falar em sede de vida era uma metáfora frágil para nosso espírito. Nossos corações, porém já haviam selado um destino comum.

(Trecho do livro O Guardião da Lenda de Frederico Ozanam Drummond )