Um livro sobre
realidades paralelas
Mani Alvarez*
Um dia, em Campinas,
reencontrei inesperadamente um antigo amigo de infância. Eu não sabia que era
ele que havia se matriculado no meu curso a distância sobre psicologia
Transpessoal e agora vinha para o nosso encontro presencial. E com ele vinha junto
parte da minha história, em Sete Lagoas. Foi uma alegria muito grande reencontrá-lo.
Me lembro bem, havia
um muro que dividia nossas casas, e por lá transitávamos sempre que queríamos
burlar as proibições maternas. Desse muro eu chamava Wanda, sua irmã e minha
amiga para compartilhar minha enorme revolta, porque minha mãe não havia me
deixado sair para brincar. Tudo que vivíamos era de forma absoluta. Ali, cada
uma do seu lado do muro, equilibrando num toco de madeira, nós planejávamos
nossa fuga, nossa vingança, nosso sonho de justiça... aquele era o nosso muro
das lamentações...
Quando, anos mais
tarde, reencontrei o Frederico em Campinas, ele não era mais aquele menino que
jogava mamona nas meninas nem zombava de nossa rebeldia feminina. Pelo
contrário, trazia em sua bagagem uma rica trajetória pessoal de consciência
intelectual e política.
Durante o curso de
psicologia Transpessoal pude conhecer um homem adulto, sofrido, profundamente
marcado por experiências dolorosas em sua vida. Mas, persistente na sua ânsia
por experimentar a ‘magia da jornada humana’.
Penso que, em algum
momento de sua vida, surgiu a inquietação para buscar, ‘no cotidiano seus
melhores materiais para um novo soneto, e assim nasceu o poeta e o seu Vôo da
Coruja. Impossível lê-lo sem se deixar tomar pelo espanto. A mente racional
entra em colapso. Quem é quem, afinal? Que tempo/espaço é esse? Na (des)ordem
dos fatos a ordem das lembranças. “De que universo estamos falando? Que
território é este em que o mistério é a norma?”
Sim, Áries, um
personagem onírico, o instruiu para seguir sempre sua intuição. E assim ‘teve
início uma jornada, sem mapas, sem destino. Na mala o medo e algumas vezes a
esperança’.
E o poeta avança: ‘O
medo como doença. O medo como poesia. O medo como regente de inumeráveis
matizes das palavras e sons da fala humana. O medo de Deus’.
Ás vezes, um lampejo,
e ele fala da ‘felicidade como um composto químico’. Logo em seguida, um sentimento de ‘falência e
incompetência’. Ao se lembrar de antigos companheiros de militância que foram
mutilados pela ditadura, e que, ‘se hoje não falam, não é porque lhes
subtraíram a língua, não falam porque lhes subtraíram a alma’. Todo seu livro é
uma revivência do luto profundo que envolveu sua alma por longos anos.
Mas o menino Frederico trazia ainda na memória
o riso de um tempo em que se acreditava invencível. E é com esse riso travesso
que ele vai conduzindo o leitor em suas memórias de militância política, quando
vivia a utopia messiânica de igualdade e justiça na Terra, quando aprendeu
novas formas de economia solidária e cooperativa, quando mergulhou na magia da
realidade xamânica e pôde questionar as crenças limitantes das (ditas)
verdades-acadêmicas.
É bem verdade que
suas leituras de física quântica o haviam preparado para essa aventura poética
de lançar-se para além de tudo e de todos. Mas foi uma coruja que o colocou à
prova, desafiando-o a voar para além do espaço e do tempo. E reencontrar a si
mesmo com outras vestes. E se ver cara a cara com a morte, e viver todas as
nuances do medo. “Decifra-me ou devoro-te’.
E foi assim que
Frederico ‘experimentou paz ao descobrir que podia viver sem respostas’.
Afinal, se tudo que conhecera em sua vida -- ‘meus medos, minhas inquietações,
minhas buscas era tudo uma miragem?’ – não havia mais a que se apegar.
Depois de desconstruir
e reconstruir a realidade de mil formas, ele encontra, finalmente, a estrada do
Caminho Sagrado, aprende a honrar os valores da Grande Mãe e a compreender que
seu corpo/território, suas águas, suas riquezas, não podem jamais serem
demarcados, comercializados, explorados.
A coruja é o espírito
que rege a filosofia. Sei que, de algum lugar ela o adverte, contudo: sim, há
um solo que é sagrado. Isto é real? Ou é produto de minha imaginação?
*Mani Alvarez
doutora em Filosofia
da Educação pela Unicamp
e Especialista em
picologia Transpessoal
manialvarez44@gmail.com