sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Ação Penal 470: uma exceção para a história

por Wanderley Guilherme dos Santos

Ao bem afamado Péricles, o ateniense, é atribuída a opinião de que, embora sendo certo que nem todos têm sabedoria para governar, a capacidade de julgar um governo em particular é universal. A observação parece valer com razoável generalidade. Por exemplo: nem por faltar um diploma em medicina está um adoentado impedido de avaliar a competência do profissional que o assiste. Assim, ainda que não portadaor de títulos ou conhecimentos para ocupar assento no Supremo Tribunal Federal, tenho como direito constitucional e recomendação de um clássico grego inteira liberdade para opinar sobre a Ação Penal 470.

Posso dispensar a cautela de não me indispor com aquele colegiado, pois não tenho licença para advogar oficialmente ou não a causa de quem quer que seja. E contrariando desde logo o juízo de algumas pessoas de bem, não enxergo qualquer efeito pedagógico nesse julgamento e não desejo em hipótese alguma que se repita em outros processos. Falacioso em seu início, enredou os ministros em pencas de distingos argumentativos e notória fabricação de aleijados fundamentos jurídicos. Não menciono escandalosos equívocos de análise com que a vaidade de alguns e a impunidade de todos sacramentaram, pelo silêncio, o falso transformado em verdadeiro por conluio majoritário. Vou ao que me parece essencial.

A premissa maior da denúncia postulava a existência de um plano para a perpetuação no poder arquitetado por três ou quatro importantes personagens do Partido dos Trabalhadores. Até aí nada, pois é aspiração  absolutamente legítima de qualquer partido em uma ordem democrática. Não obstante, é também mais do que conhecido que o realismo político recomenda, antes de tudo, a busca da vitória na próxima eleição. Não existe a possibilidade logicamente legítima de extrair de uma competição singular, exceto por confissão dos envolvidos, a meta de perpetuação no poder de forma ilegal ou criminosa. Pois o procurador-geral da República pressupôs que havia um plano transcendente à próxima eleição, a ser executado mediante meios ilícitos.

A normal aspiração de continuidade foi denunciada como criminosa, denúncia a ser comprovada no decorrer do julgamento. E aí ocorreu essencial subversão na ordem das provas. Ao contrário de cada conjunto parcial de evidências apontar para a solidez da premissa era esta que atribuía a frágeis indícios e bisbilhotices levianas uma contundência e cristalinidade que não possuíam. Todos os ministros engoliram a pílula da premissa e passaram a discutir, às vezes pateticamente, a extensão de seus efeitos. Dizer que a mídia reacionária ajudou a criar a confusão, que, sim, o fez, não isenta nenhum dos ministros da facilidade com que caíram na armadilha arquitetada pelo procurador geral e pelo ministro relator Joaquim Barbosa.

Era patético, repito, o espetáculo em que cada ministro procurava nos textos legais quer a inocência, quer a culpabilidade dos acusados. Em momentos, fatos que eram apresentados por um ministro como tendo certa significação, derivada da premissa, e por isso condenava o acusado pelo crime supostamente cometido, os mesmos fatos eram apresentados como significando o oposto e, todavia, servindo de comprovação da culpabilidade do acusado. Exemplo: a ministra Carmem Lucia entendeu que o fato de a mulher de João Paulo Cunha ter ido descontar ou receber um cheque em gerência bancária no centro de Brasília comprovava a tranqüilidade com que os acusados cumpriam atos criminosos à luz do dia, desafiadoramente. Já a ministra Rosa Weber interpretou o mesmo fato como uma tentativa de esconder uma ação ilegal e, portanto, João Paulo Cunha, seu marido, era culpado. Uma ação perfeitamente legal, note-se, o desconto de um  cheque, sofreu dupla operação plástica: uma transformou-o em deboche à opinião pública, outra o encapotou como um pioneiro ato blackbloc. Dessas interpretações contraditórias, seguiu-se a mesma conclusão condenatória, pela intermediação da premissa maior, segundo a qual qualquer ato dos indiciados estava associado àquele desígnio criminoso.

Estando os acusados condenados conforme tal rito subversivo, o julgamento de outras acusações (sendo o julgamento “fatiado” como bem arquitetou o relator Joaquim Barbosa, enfiando-o aos gritos pela goela de nove dos 11 ministros) se iniciava assim: tendo ficado provado que o réu cometeu tal e tal crime, lá se ia nova acusação como se se tratasse de um reincidente no mundo do crime em momentos diferentes no tempo. E mais, como se a condenação já estabelecida houvesse confirmado a veracidade da premissa maior sobre a existência de um plano político maligno. Pois assim foi até o fim: a premissa caucionando indícios frágeis – e até mesmo a total ausência de indícios como na fala da ministra Rosa Weber explicando que aceitava a culpabilidade de José Dirceu justamente pela inexistência de provas – e os indícios frágeis, convertidos em condenações, emprestando solidez a uma estapafúrdia premissa.

Foi igualmente lamentável o espetáculo da dosimetria. Como calcular penas segundo a extensão e intensidade do agravo, se a existência do agravo pendia de farrapos de indícios? E como calcular se o que sustentava os indícios era uma conjetura dialeticamente tornada plausível por esses farrapos e para a qual não há pena explícita consignada?

Todos os ilícitos comprovados, e vários o foram, se esclarecem e adquirem sentido terreno quando se aceita o crime confesso de criação e utilização de caixa dois.
Esta outra acusação foi desvirtuada pela mídia e pelos ressentidos de derrotas eleitorais, apresentando-a como tentativa de inocentar militantes políticos.
Notoriamente, buscou-se punir de qualquer modo os principais nomes do Partido dos Trabalhadores. A seguir, sucederam-se os contorcionismos para a montagem de um roteiro em que se busca provar o inexistente.

Não há nada a copiar neste julgamento de exceção – a Ação Penal 470.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Preto, pobre, prostituta e petista - DO Blog da Cidadania

Num tempo
Página infeliz da nossa história
Passagem desbotada na memória
Das nossas novas gerações
Dormia
A nossa pátria mãe tão distraída
Sem perceber que era subtraída
Em tenebrosas transações”
 Vai Passar (Chico Buarque)
O Brasil amanheceu pior do que ontem. A partir de agora, torna-se oficial o que, até então, era uma tenebrosa possibilidade: cidadãos brasileiros estão sendo privados de suas liberdades individuais apenas pelas ideologias político-partidárias que acalentam.
A “pátria mãe tão distraída” foi “subtraída em tenebrosas transações” entre grupos políticos partidários e de comunicação e juízes politiqueiros.
Na foto que ilustra este texto, o leitor pode conferir o único patrimônio de um político que foi condenado pelos crimes de “corrupção ativa e formação de quadrilha” pelo Supremo Tribunal Federal em 9 de outubro de 2012.
Junto com ele, outros políticos ou militantes políticos filiados ao Partido dos Trabalhadores, todos com evoluções patrimoniais modestas diante dos cargos que ocupavam na política.
José Dirceu, José Genoino, João Paulo Cunha e Henrique Pizzolato tiveram suas prisões decretadas com base em condenações por uma Corte na qual, ao longo de sua existência secular, jamais políticos de tal importância foram condenados.
A condenação desses quatro homens, todos de relevância político-partidária, poderia até ser comemorada. Finalmente, políticos começariam a responder por seus atos. Afinal, até aqui o STF sempre foi visto como a principal rota de fuga dos políticos corruptos.
Infelizmente, a única condenação a pena de prisão que aquela Corte promulgou contra um grupo político foi construída em cima de uma farsa gigantesca, denunciada até por adversários políticos dos condenados, como, por exemplo, o jurista Ives Gandra Martins, que, apesar de suas divergências com o PT, reconheceu que não houve provas para condenar José Dirceu, ou como o formulador da teoria usada para condenar os réus do mensalão, o alemão Claus Roxin, que condenou o uso que o STF fez de sua revisão da teoria do Domínio do Fato.
Dirceu e Genoino foram condenados por “formação de quadrilha” e “corrupção ativa” apesar de o primeiro ter estado infinitamente mais distante dos fatos que geraram o “escândalo do mensalão” do que estão Geraldo Alckmin e José Serra dos escândalos Alston e Siemens, por exemplo.
Acusaram e condenaram Dirceu apesar de, à época dos fatos do mensalão, estar distante do Partido dos Trabalhadores, por então integrar o governo Lula. Foi condenado simplesmente porque “teria que saber” dos fatos delituosos por sua importância no PT.
Por que Dirceu “tinha que saber” das irregularidades enquanto que Alckmin e Serra não são nem citados pelo Ministério Público, pela Justiça e pela mídia como tendo responsabilidade direta sobre os governos nos quais os escândalos supracitados ocorreram?
O caso Genoino é mais grave. Sua vida absolutamente espartana, seu microscópico patrimônio, sua trajetória ilibada, nada disso pesou ao ser julgado e condenado como um “corruptor” que teria usado milhões de reais para “comprar” parlamentares.
O caso João Paulo Cunha é igualmente ridículo, em termos de sua condenação. Sua mulher foi ao banco sacar, em nome próprio, com seu próprio CPF, repasse do partido dele para pagar por uma pesquisa eleitoral. 50 mil reais o condenaram por “corrupção passiva, peculato e lavagem de dinheiro”.
O caso mais doloroso de todos, porém, talvez seja o de Henrique Pizzolato, funcionário do Banco do Brasil, filiado ao PT e que, por ter assinado um documento que dezenas de servidores da mesma instituição também assinaram sem que contra eles pesasse qualquer consequência, foi condenado, também, por “corrupção passiva, peculato e lavagem de dinheiro”.
Isso está acontecendo em um país em que se sabe que dois governadores do PSDB de São Paulo, apesar de ter ocorrido em suas administrações uma roubalheira de BILHÕES DE REAIS, não são considerados responsáveis por nada.
Isso está acontecendo em um país em que um político como Paulo Maluf, cujas provas de corrupção se avolumam há décadas, jamais foi condenado à prisão.
Isso está acontecendo em um país em que um governador como Marconi Perillo, do PSDB, envolveu-se até o pescoço com um criminoso do porte de Carlinhos Cachoeira, foi gravado em relações promíscuas com esse criminoso e nem acusado foi pelo Ministério Público.
Isso está acontecendo, finalmente, no mesmo país em que os ex-prefeitos José Serra e Gilberto Kassab toleraram durante anos roubalheira dentro da prefeitura e quando essa roubalheira de MEIO BILHÃO de reais vem à tona, a mídia e o Ministério Público acusam quem mesmo? O PT, claro.
Já entrou para o imaginário popular, portanto, que, neste país, cadeia é só para pretos, pobres, prostitutas e, a partir de agora, petistas.
No Brasil, as pessoas são condenadas com dureza pela “justiça” se tiverem mais melanina na pele, parcos recursos econômicos, se venderem o que só pertence a si (o próprio corpo) para sobreviver ou se tiveram convicções políticas que a elite brasileira não aceita.
A condenação de alguém a perder a liberdade por suas convicções políticas, porém, é mais grave. É característica das ditaduras, pois a desigualdade da Justiça com os outros três pês deriva de falta de recursos para se defender, não de retaliação a um ideário.
Agora, pois, é oficial: você vive em um país em que se deve ter medo de professar e exercer suas verdadeiras convicções políticas, pois sabe-se que elas expõem a retaliações ditatoriais como as que levarão para cadeia homens cuja culpa jamais foi provada.
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Abaixo, charge do cartunista Vitor feita especialmente para este post