A janela de oportunidades aberta pela crise não se fechou. Mas para aproveitá-la, é preciso um novo gênero de alternativas
A difusão dos valores e lógicas pós-capitalistas está criando rapidamente condições para um passo adiante. Já é possível antever o momento em que será possível pensar em políticas contra-hegemônicas. Elas disputarão espaço com as atuais. Estarão apoiadas nas relações sociais de colaboração que se expandem e serão favorecidas pelos desarranjos na ordem internacional em vigor.
Formular estas alternativas, porém, requer um grande esforço político e teórico. Porque elas diferem tanto das estratégias de tipo leninista (cujo objetivo essencial era enfraquecer a classe adversária e criar condições mais favoráveis à conquista do poder de Estado) quanto das social-democratas (que não questionavam a natureza das relações capitalistas).
O sentido das novas alternativas deve ser abrir espaço para a multiplicação das relações sociais de sentido pós-capitalista, mesmo enquanto as lógicas “de mercado” ainda predominam. Isso pode ser feito por três caminhos, entre outros.
A) Desmercantilizar aspectos importantes da vida social instituindo, em substituição às leis do lucro, as dos direitos. O acesso à terra e à água; à saúde e educação de qualidade; aos bens culturais e artísticos ou à vida em cidades humanizadas devem ser assegurados a todos os seres humanos do planeta, independentemente de contrapartida monetária. A decisão de instalar um aqueduto ou uma rede de acesso rápido à internet, numa aldeia africana ou num vilarejo pobre do Brasil, não pode estar subordinada ao poder aquisitivo da população local. Trata-se de bens indispensáveis a uma vida contemporânea digna. As sociedades devem assegurá-los por meio de medidas redistributivas – inclusive impostos internacionais.
Este processo não deve ser visto como meio para “inclusão” de todos nas relações capitalistas — mas como substituição destas por outras, de natureza mais avançada. Por isso, não se trata de desmercantilizar apenas as atividades pelas quais o capital pouco se interessa (por agregarem pouco valor de troca) e sim as que expressam as tendências sociais e culturais mais recentes. Capacitar-se a produzir conteúdos para as novas mídias ou ter acesso a um tratamento genético de última geração devem ser considerados direitos humanos.
A generalização progressiva de uma renda cidadã, inclusive em escala planetária, é peça fundamental desta estratégia. Ela cria alternativas à mercantilização do trabalho – uma das engrenagens principais para promover a acumulação de riquezas e a submissão social no capitalismo. Significa que ninguém será obrigado a assalariar-se, para viver com dignidade. Viabiliza, como forma substituta de organizar a produção, as redes ultra-eficazes de trabalho colaborativo, que serão tratadas no tópico a seguir.
Além disso, está se tornando econômica e politicamente possível. Os cerca de 5 trilhões de dólares usados pelos bancos centrais para salvar instituições financeiras atingidas pela crise seriam suficiente para assegurar, durante um ano, cerca de 2 dólares por dia, a cada habitante do planeta. Segundo as Nações Unidas, metade da população mundial sobrevive com uma renda inferior a esta.
B) Favorecer a expansão as relações de produção colaborativas. A hegemonia das relações capitalistas jamais foi capaz de eliminar por completo as relações de trabalho não-mercantis – expressas, por exemplo, nas cooperativas operárias ou na chamada “economia da doação” (“gifty economy”). A novidade recente é que estas relações já não se limitam às margens da produção de bens e serviços. A internet e a possibilidade de produzir à distância estão multiplicando as redes mundiais de trabalho e colaboração. Elas viabilizaram o surgimento do Linux e estão por trás de todas as ferramentas mais inovadoras e atraentes da web: o Google, o Facebook, o Mozilla e o Open Office, entre outros. Introduziram um sistema de troca de bens artísticos que está corroendo as bases da indústria cultural – e estabelecendo padrões inéditos de acesso à música, ao cinema ou às notícias… Desafiaram com sucesso, em diversos países e oportunidades, o controle político antes exercido pela mídia de mercado, ao permitir a circulação de informações e análises antes omitidas.
Tais redes desafiam dois dogmas cruciais do capitalismo. Elas mostram que o trabalho colaborativo pode ser altamente eficaz: a Microsoft está sendo suplantada em vastos terrenos da informática e da internet porque desconfiou desta potência, e apostou na força do trabalho mercantil e comandado hierarquicamente. Elas também revelam que a defesa dos interesses egoístas não é a única, nem a mais importante, motivação dos seres humanos para a produção social. Ao criar e disponibilizar um plugin ou um gadget para o Facebook ou o Google Waves, um jovem desenvolvedor não se move principalmente pelo dinheiro, mas pelo desafio intelectual de resolver problemas relevantes para os quais ainda não há solução.
Um dos temas centrais de uma política pós-capitalista deve ser a busca de meios que consolidem e multipliquem as redes de trabalho e colaboração. É preciso, por exemplo, reformular por completo as leis atuais de “proteção” às patentes, à propriedade intelectual e aos direitos autorais. Caso caricatural de anacronismo, elas restringem o que deveriam promover: a circulação mais livre e ampla possível dos produtos intelectuais da humanidade. Como alternativa, precisam surgir formas não-mercantis de remunerar, com recursos públicos, o esforço de um desenvolvedor de software, de um criador de música ou de produtor de notícias que trabalha em rede. Não se trata de algo utópico, mas simplemente de generalizar para outras atividades produtivas o sistema de redistribuição que tornou possíveis, há séculos, por exemplo, as universidades públicas…
C) Criar as bases de uma nova democracia, em rede e pós-representativa. Se os sistemas políticos estão em crise em todo o mundo, é preciso buscar, para este fenômeno, causas globais. Elas estão provavelmente relacionadas ao esvaziamento da democracia representativa. As enormes novidades econômicas dos últimos trinta anos deram-se num ambiente ideológico que valorizava os mercados, não as decisões conscientes . A globalização transferiu parte importante das decisões que afetam as sociedades para uma esfera internacional colonizada pelo capital, e “livre” de qualquer respeito à democracia. O agigantamento e a desterritorialização dos mercados financeiros criaram um poder sem controle – e capaz de impor sua vontade aos Estados. Surgiu criminalidade internacional — que se beneficia do fluxo sem controle de capitais, tem enormes somas de dinheiro disponível e interesse concreto em estar presente nos palcos institucionais. Todos estes fatores fizeram dos parlamentos e das eleições – as peças fundamentais da democracia representativa – algo próximo a um simulacro, que desperta entre as sociedades algo entre a apatia e a repulsa.
A resposta do pós-capitalismo, porém, não pode ser uma batalha (de antemão perdida) para restaurar as velhas instituições. Precisa estar conectada com o novo. A ideia de que política é um conjunto de ações, desejos, opções e responsabilidades que se pratica todos os dias – ao invés de se transferir, a cada quatro anos a nossos “representantes”. A noção de que o Estado é importante, como espaço público em que se legitima e consolida parte dos direitos conquistados – mas nada substitui a sociedade como locus onde se criam, experimentam e aperfeiçoam novas relações.
A proposta de criar democracias de alta intensidade, nas quais as populações, ao invés de simplesmente eleger representantes, possam examinar, refletir e agir sobre aspectos relevantes da vida coletiva, hoje neglicenciados pelas instituições. Reverter os processos de alienação, que nos impedem de refletir sobre o que produzimos e levam a enxergar o inaceitável como “natural”. Mapear coletivamente, por exemplo, as emissões de CO2 de uma determinada região e discutir as maneiras de reduzi-las. No plano nacional, transferir para instrumentos de democracia direta, com uso de comunicação em rede, um conjunto cada vez mais amplo de questões. Se os bancos espalham terminais remotos para que os clientes operem diretamente suas contas bancárias; e se a TV usa o telefone e a internet para que os espectadores decidam os rumos dos reality shows, por que as instituições não podem consultar os cidadãos sobre os principais projetos de lei que alterarão sua vida?
Como, porém, promover reformas políticas, se elas precisam ser aprovadas pelos que se beneficiam do atual sistema? Aqui, é preciso usar criatividade e rejeitar as soluções únicas. Embora refiram-se a situações muito particulares, experiências como as da Bolívia e Equador, que reorganizaram seu sistema político com ampla participação popular em Assembléias Constituintes merecem ser analisadas.
É provável, porém, que na maioria dos países as instituições “democráticas”, embora esvaziadas, sejam mais estáveis. Nestes casos, a invenção política pode originar inovações que servem de aprendizado e se reproduzem pela força do exemplo. Em diversos países da Europa, os poderes locais têm autoridade relevante e, em muitos casos, são dirigidos por governantes abertos à democracia. Por que não estimulá-los a lançar, por exemplo, experiências de “Orçamento Participativo 2.0”, em que os cidadãos são chamadas a decidir permanentemente, via internet e ou em reuniões presenciais, sobre prioridades e alocação de recursos?
Tecnologia Social, sustentabilidade, economia solidária, cooperativismo, comércio justo, redes de cooperação solidária: o desenvolvimento destes domínios constitui o fundamento da THEIA VIVA.
sábado, 6 de fevereiro de 2010
Pós-capitalismo e o Espaço para uma nova hegemonia: 3 Hipótese
Muitas vezes a didática nos obriga a ser repetitivo, então vamos lá: tenho dito que nenhum modo de produção é monolítico, mas genemônico. Não sendo monolítico todos também possuem fissuras. São estas fissuras as janelas para um outro modo de produção. Esta é a natureza da dialélica. A geração dos pensadores e ativistas da minha geração - anos 60/70 - acostumou-se com idéia que os processos revolucionários são constitutidos de embates físicos. Uma visão sistêmica e dialética da história nos mostra que isto é uma grande tolice. Rosa Luxemburgo já sabia disto nos idos dos anos de 1920. É preciso rever seus escritos. É nesta linha que apresentamos a Terceira Hipótese, como a seguir:
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