I
- Onde moram os sonhos? Onde moram os sonhos?
Teodoro se sentia subjugado por esta idéia, mas descartava seu
exílio. Já era uma obsessão. Não, obsessão não era. Podia ser angústia. Como se
uma dimensão tão profunda em todos os mortais escapasse de acolhida. Podia ser.
Não como uma condicional. Os sonhos são afinal de uma ordem pouco afeita aos
ordenamentos. Se bastam, mesmo quando não pousam no absoluto. Teodoro descansou
o teclado disposto a procurar a face concreta do sol, da chuva e das árvores. Nela
se benzia exorcizando os fantasmas das inquietações. Porque afinal naufragar
nestes enredos que abdicaram de qualquer limite? Não fazia mesmo sentido
mínimo. Inda que perquirisse as entrelinhas de todas as escrituras. Deus não se
oculta nas prosopopéias. Afinal
não existe superlativo na face do incomensurável. Teodoro
acordou com o coração batendo nas têmporas. O sonho agora se lhe escapava e
junto o sono. Tinha os olhos despertos tal com a alma. Não podia refugiar-se da
dor da iniquidade. Sabia que era vítima de suas próprias escolhas. Teodoro
ainda sentia o impacto destas lembranças quando chegou à Lagoa Nova. Atravessou
a pequena ponte. Haveria de lembrar-se da qualidade suspeita das águas do
pequeno riacho. Cumprimentou o guardião da portaria e seguiu até sua chácara. A
casa pintada com as cores de tijolo queimado buscava combinar com toda a
paisagem. O quarto mergulhado na sombra era um contraponto ao frescor das
mangueiras. Nesta época do ano elas se mostravam coloridas com seus frutos
amarelos. Teodoro abriu a janela. O sol trazia vigor para um ambiente em que a
tristeza recolhia-se em lembranças ancestrais. Não sei o tempo. Nenhum dedo
humano veio para pousar digitais sobre tantos livros e documentos ali
depositados. Uma década? Um ano? Teodoro olhou pela janela; o jardim estava bem
cuidado. Impossível não registrar este estranho contraste.
- Vou deixar a porta aberta. Facilita a circulação do ar. Teodoro agora
visitava outros territórios. Os cômodos fechados retinham histórias de não sei
quanto tempo. Uma estranha sensação do passado de um tempo sem calendário. A
antiga biblioteca o que guardava? As traças parecem ter capitulado à robustez
daquelas capas de couro. De sua precária existência de inseto não havia
qualquer registro. Agora todas as janelas estavam abertas. As portas abertas.
Uma coluna de vento ganhou o espaço das brisas fazendo revoar o papel velho
sobre a mesa. Quanto tempo estes papéis aguardaram algum uso? Uma caneta que
fosse para lembretes. Datas de aniversários. Recomendações. Contas vencidas de
uma data que ninguém sabia. Agora o vento rouba-lhes qualquer função mais
nobre. Teodoro percebeu que a mobília da sala estava arrumada. Seu último
ocupante assim deixou. Não era nem mesmo uma casa antiga. Quanto tempo fechada?
Indagação que fazia de sua inutilidade os sinais de uma longa ausência. Talvez
nem tanto. Um ano, meses, poucos dias? Alguns fantasmas de certo apego familiar
gostavam deste aconchego. Mas estes também se foram. Teodoro tinha entrado na
casa pela área de serviço. A sala de visitas era o derradeiro cômodo. Ele
conservou a solenidade de todas as visitas que ali pousaram. Chamava atenção a
grande quantidade de quadros que repousavam na superfície neutra das paredes.
Uma combinação disforme que aceitava estilos de muitas eras. No meio da
paredetrês grandes retratos geometricamente dispostos. À direita meus avós
paternos e seus filhos. Conseguia reconhecer cada um deles. À esquerda meus
avós maternos e seus filhos. Sem convivência as faces não se apresentavam na
identidade dos meus tios. Gostaria de ter conhecido cada um deles. Minha mãe
relata aventuras que fariam o encanto das melhores obras de teatro. No centro
um retrato com meus pais e todos os meus irmãos. Teodoro se deteve neste quadro
com inesperada curiosidade. Havia uma promessa de mistério. Tinha uma clara
lembrança do dia que todos os irmãos dispostos por idade, meus pais ao centro,
aguardavam o registro desta imagem para história de cada um. Eu me detinha no
rosto de todos eles. Novos demais para abrigar feitos heroicos. Éramos nove
irmãos. No canto direito, sentado em um banquinho, um dos meninos guardava
minha identificação. Quem era? Fiz uma chamada visual e ali somavam dez. Eu
tenho certeza que na foto original não havia aquele menino e o seu banquinho.
Era um registro de família. Nestes assuntos meu pai tinha rigor. Nenhum
parente, nenhum vizinho, nenhum estranho se acomodaria neste banquete. No
entanto estava ali. Olhei seus traços, o feitio dos olhos e o traçado do nariz.
O cabelo louro, liso penteava-se para o lado, deixando uma risca na lateral da
cabeça. Era de moda. Usava uma camisa xadrez e um tipo de jardineira. Uma
bermuda acomodada por um tipo de suspensório, que revestia o peito. Não era o
estilo de roupa dos meus irmãos. Quem era aquele visitante? Como ele foi parar
em nosso retrato de família? Teodoro procurou no fundo dos olhos alguma
familiaridade. Em um instante aqueles olhos ganharam vida. Foi um destes
momentos de inquietação em que temos a sensação de uma ruptura do tempo. Seus
olhos agora me pareciam estranhamente familiar. Estranhamente ameaçador. Não.
Não era sua infância que ameaçava. Nem seu vestuário. Muito menos seu corte de
cabelo. Era sua presença. Algo que afrontava meu senso de realidade. Teodoro
fez um movimento em direção ao quadro. Ia levá-lo. Alguns dos meus irmãos
poderiam elucidar. Quem sabe meus pais. Meus avós. Invocarei meus antepassados
em seus préstimos geracionais. Não tinha um nome para ele. Assim chamei-o de
Remiau. Um apelido que vinha da fantasia. Meu irmão mais novo conhecia esta
história. Talvez conhecesse o mistério de sua presença. Talvez conhecesse mesmo
outros mistérios. Como do dia em que foi abduzido e deixado sem amparo no topo
da serra de Santa Helena. Eu sei que meus avós são também depositários de
mistérios. Pude ouvir de cada um os seus relatos. Nenhuma outra testemunha além
de minha memória. Nenhum diário, nenhuma carta conteria este registro. Já tinha
anoitecido quando Teodoro se deu conta do tempo. Lá fora uma densa bruma era
barreira para qualquer viagem. Os faróis do carro nada podiam contra estas
paredes da noite. Teodoro avaliou como mais prudente pernoitar ali mesmo. Os
préstimos de qualquer das camas requisitavam rápida faxina. Nem foi preciso
repetir. A sucessão de espirros denunciou um celeiro de ácaros. Menos de uma
hora depois a cama era convite perfeito para o necessário repouso. Teodoro já
tinha decidido que passaria os próximos dias na antiga casa de campo, próximo a
Sete Lagoas.O clima, a paisagem, a topografia em Minas Gerais possui uma enorme
diversidade. Neste ponto do estado as temperaturas são um pouco mais altas do
que as do sul. O ar seco e uma vegetação retorcida lembra que estamos na boca
do cerrado. Mas naquele dia, uma manhã de setembro, Teodoro foi brindado com
uma orquestra que combinava sons de pássaros, latido de cães e o ruído manso da
folhagem de uma mangueira próxima da casa. Lembrei-me do dia que da janela da
cozinha do apartamento dos pais de Júlia ficamos olhando o bailado das folhas
de uma árvore. Um parque do outro lado da rua. Era uma benção esta visão.
Também era primavera. De sorte que o colorido de flores de campo decorava o
bosque com a predominância do verde de suas folhas. Ficamos uns cinco minutos
apenas encantados com a harmonia daquele bailado. O som de passos requisitou a atenção
de Teodoro, que observou a nova presença. Ele tinha uma estatura franzina. O
sol de todos os dias já havia colorido seu tronco além de um simples bronzeado.
Valdir era também um homem do cerrado. Se fosse uma árvore seria um arbusto.
Baixo, mas muito resistente. Por um estranho motivo sua mulher não gostava do
seu nome. Chamava-o pelo sobrenome de família, Teixeira.
-Estou surpreso depois de tanto tempo. O senhor não mudou
nada. Vai voltar?
Eu não sabia. E não era tanto tempo. Talvez um ano. Agora eu
não tinha ideia para onde iríamos. Júlia provavelmente faria algumas mudanças.
Uma melhoria aqui e ali. E seria um lugar agradável para morarmos. Isto também
teria ainda que resolver. Gosto de imaginar que toda a casa ganharia mais
frescor se estivesse cercada com um belo gramado. Teixeira mantinha os dez mil
metros de terreno sempre muito limpo. Seu particular cuidado com o jardim da
casa causava ciúmes em dona Marilene, sua mulher.
-Seu Teodoro, todo dia eu peço pro Teixeira plantar umas
margaridas e umas flores do campo na frente de casa. Cadê? Faz nada.
Deixei-a desabafar o quanto queria. Mas o terreno era muito
pedregoso. Talvez por isto tivesse aquele ar seco. Até para caminhar entre as
árvores era difícil. Era só tropicão. Ai batia um desânimo daqueles. Teixeira
se desculpou pela poeira nos cômodos.
- Todo semana dou uma limpeza, senão tava muito pior.
Teixeira pediu desculpas quando me viu olhando atento para o
quadro de família.
- Um dia ele caiu assim sem menos, seu Teodoro. Tava passando
a vassoura na sala e ouvi o barulho. Nem dei conta de pronto. Depois vi o
buraco no meio dos outros quadros. Foi quando vi esse do meio no chão. Juro por
minha mãe que nem encostei nele. Deve ser o prego. Só aí percebi que o vidro
tinha quebrado. Mas prontinho pendurei de novo. Vi o senhor olhando. Depois
desconta o vidro do meu salário.
- Não tem problema Teixeira. Nem lembrava que tinha vidro.
- O senhor acredita em alma seu Teodoro?
- Que papo é este Teixeira? Alma do outro mundo. O que tem
as almas do outro mundo?
- Nada não. Já tem tempo. Eu pensei que o senhor tinha
voltado. Pra mais de uns par de meses. Ouvi os cachorros do seu vizinho latindo
e vim correndo. Aí já estranhei quando não vi seu carro. Nenhum carro. A luz da
sala tava acessa. E eu vi direitinho um menino correndo. Vai desculpar seu Teodoro.
Foi um arrepio só. Pensei que ia desmaiar. Voltei correndo e contei pra mulher.
Só no dia seguinte, dia alto, tive coragem de voltar lá. Guardei bem o dia
porque foi quando vi o quadro que tinha caído a primeira vez. Mas aí o vidro
não quebrou. Quebrou depois. Quando eu varria a sala. A lâmpada ainda acessa eu
tratei de apagar. Domingo a mulher mandou celebrar missa prasalmas penadas.
Teixeira não era homem de estranhamentos. Sua história foi o
bastante para redobrar minha curiosidade sobre o menino da fotografia. Na hora
me lembrei do professor Artur Kiev. Seu acervo era impressionante. Mas isto já
tinha mais de trinta anos. Se ele estivesse vivo estaria muito velhinho. Suas
pesquisas sobre episódios paranormais eram cuidadosas. O professor Kiev foi um
dos mais criteriosos que já conheci. Era um território em que o mistério confunde-se
fácil com toda sorte de invencionice. Logo Teixeira chamou minha atenção para
urgência de outras tarefas. Falou de uma praga que atacou os cajueiros. As
folhas escureciam e ficavam retorcidas. Os frutos pouco cresciam e logo
murchavam. Queria minha autorização para passar um pesticida. Minha posição
ainda era a mesma. Ia pesquisar algum remédio para curar os cajueiros. Ali bem
perto as abelhas nativas faziam morada. O antigo meliponário tinha merecido a
atenção do Teixeira.
- Colhi bem uns cinco litros todos os anos, seu Teodoro. Tá
lá em casa, nas garrafas. Do mesmo jeito que o senhor recomendou. Elas ficam
tombadas que nem vinho.
A explicação do Teixeira foi bastante para reforçar minha
proibição de usar os pesticidas.
- Elas vão na florada do cajueiro. Se colocarmos veneno elas
vão morrer. É por isto que deve ter alguma alma tomando conta das abelhinhas.
Teixeira não gostou da minha brincadeira e amuou.
-Fica tranquilo homem, isto é uma brincadeira de nada.
Pelo sim pelo não mudamos para o assunto da cerca. Teixeira
comentou que precisava reformar a cerca no fundo da chácara. Os postes de
eucalipto estavam apodrecendo e a cerca bambeando. Com esta prosa deixamos de
lado o assunto que agora ficava em silêncio em meu próprio espírito.O que
aconteceu com o retrato de minha família?Tive o cuidado de recolher dois velhos
livros de minha antiga biblioteca. Eram apontamentos do meu avô sobre episódios
do final do século XIX.Contava histórias datadas de 1887. Ali, abandonado à
minha imaginação viajei neste passado. Em meu DNA estavam impressas indagações
do mistério. Lembrei-me quando meu avô contou-me de uma sociedade secreta que
ele e alguns amigos tinham criado. Era moda vinda da França. O estatuto era
rigoroso. A traição era punida com a morte. Quando um dos confrades decidiu
abandonar o grupo a sociedade se reuniu para deliberar. Meu avô conta do forte
constrangimento. O estatuto tinha que ser cumprido. Ninguém se habilitou para
tão nefasta missão. Era um amigo de muito tempo que ia ser executado. Um dos
membros era um espanhol de sangue quente.
- Não precisa fazer sorteio nenhum. Eu mato o traidor.
O pesado silêncio selou a gravidade do momento. Não houve
execução. Poucos dias depois a sociedade estava desfeita. Meu avô terminou seu
relato. No seu livro de memórias não havia qualquer referência à “Mão dos
Justos”. Em minha curiosidade indaguei meu avô do propósito desta sociedade.
Havia uma inspiração na maçonaria. O grupo tinha também uma forte influência de
crenças esotéricas e espíritas. Um jornal da cidade fez uma denúncia.Seitas
satânicas estavam se organizando na cidade. Um panfleto anônimo cuidou de
desmentir o jornal. No final a assinatura: “Fraternidade Mãos dos Justos”.
Depois que a sociedade foi desfeita alguns dos integrantes voltaram a se reunir,
agora com o objetivo de pesquisar fenômenos paranormais. Meu avô mantinha um
segredo de confessionário sobre acontecimentos anômalos ocorridos em suas
reuniões. Teodoro tinha sua curiosidade ainda mais aguçada. Tinha ligação com a
Opus Dei? Com os Illuminati? Com os Templários? Meu avô apenas me olhava com
uma severidade que não comportava contestações. Teodoro se deu conta de seus
compromissos. Tinha combinado com Júlia retornar antes do almoço. Já passava
das onze. Para Teodoro todas estas dúvidas apenas selavam um compromisso com
uma investigação mais minuciosa. O cotidiano cobrava praticidade. Pedi dona Marilene
que caprichasse na limpeza. Queria passar o fim de semana na chácara com Júlia.
Nossos filhos e netos viriam de São Paulo. Há muito planejamos esta
confraternização. Seria um verdadeiro reencontro com nossa própria infância. Nossos
netos estavam crescendo e quase nada sabiam do encantamento do cerrado. A
lembrança dos netos acendeu outras lembranças. Teodoro logo faria setenta anos.
Fazer planos para o futuro era algo que trazia algum desconforto. Mas havia um
forte desejo de morar em uma casa de praia. E este era um projeto que encantava
igualmente Júlia. Viajando em seus pensamentos Teodoro não se deu conta do
trajeto de sua chácara até a casa de sua mãe. Chegou junto com um agente dos
correios. Foi uma enorme surpresa.A correspondência tinha meu nome como
destinatário. A surpresa cresceu como uma avalanche. A remetente assinavaHelen Lefebvre. A localização, Chartres – France. E em baixo
um carimbo identificando o Institut Monroe France – Exploration de
laConscience.Teodoro segurou a correspondência com a expectativa de um menino
em véspera de natal. O coração pulsava na garganta. Depois de tanto tempo.
Difícil acreditar. Em um lampejo Teodoro voltou no tempo. Mais de vinte anos.
Podia ser. Viu mentalmente o rosto de Juracy e toda sua fantástica história.Lembrou-se
do dia que tudo aconteceu. Agora a própria Helen envia uma correspondência. Teodoro
entrou na casa de sua mãe com o envelope ainda lacrado. Sentou-se no sofá da
sala. Com uma urgência de muitos anos rasgou o envelope pela lateral. Do seu
interior retirou uma espécie de manual. O principal destaque da capa eram as
palavrasRobert Allan Monroe – “Journeys Out oftheBody”. Teodoro
lembrou-se que este era o nome em inglês do livro em que Monroe relata suas
experiências de projeção da consciência. Tinha muitos nomes. Viagem astral,
experiência fora do corpo e outros parecidos. Era muito estranho que depois de
tantos anos esta correspondência tenha chegado ao endereço de minha mãe aqui em
Sete Lagoas. O manual não continha nada de novo além do que eu já tinha lido no
livro. Nada de novo. Mas ali estava. Preciso descobrir o que pretende Helen Lefebvre. Se ela estiver viva estará
hoje com pouco mais de noventa anos. Prefiro acreditar que foi uma
correspondência que ficou perdida. E por alguma razão o serviço de correio
rastreou meu último endereço. Teodoro sabia que a hipótese era pouco
verossímil. E sabia que não descansaria enquanto não tivesse uma explicação
minimamente razoável. Afinal esta tem sido minha jornada desde sempre. E é
possível que não haja nenhum outro motivo além de ser apenas o caminho que
tenho trilhado. Suas pegadas estavam cravadas em cada instante de sua vida. Teodoro
sabia disto com a força de uma obsessão. Esta era parte de sua lenda pessoal.
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