A ousadia misturava-se com um sentimento ingênuo de poder. Teodoro carregava a certeza que o impossível não existia. Podia tudo. Ia mudar o mundo. Nada o afastaria dos seus propósitos. Com o impulso desta determinação eu sairia do interior de Minas para novas pelejas em Belo Horizonte. Eu já tinha decidido fazer o curso de ciências sociais. Confessava minhas certezas em mesa de bar para dois amigos. Entre as garrafas de cerveja tramávamos um contragolpe. O tempo dos militares no poder estava contado. Meu coração adolescente estava preparado para todos os golpes. Naquele sábado foi tudo diferente. Foi a primeira vez que vi Júlia. Ela passou pela minha mesa trajando uma jardineira branca. Duas tranças conferiam ao seu rosto de mulher a doçura de um anjo barroco. Uma troca de olhar teve a força do arrebatamento. Para Teodoro o mundo, de repente, ficou indecifrável. Nós tínhamos praticamente a mesma idade. Projetos de vida diferentes, talvez. Os dias se seguiram procurando um novo dialeto. Afinal este era um desafio de Deus. Impossível sondá-lo. Adão e Eva estavam ali no livro sagrado. Reparti o inusitado com meus companheiros de bar. Eu experimentava uma emoção que me colheu desarmado. Ninguém me disse. Nenhum professor alertou-me. Uma semana depois um novo encontro foi puramente casual. Andamos pela cidade por quatro horas seguidas. Todos os assuntos se atropelavam como se a eternidade pudesse sucumbir no instante seguinte. Depois sentamos em um recanto, sob a proteção de uma frondosa quaresmeira, e conversamos por um tempo que não tinha fim. Júlia também seguiria para Belo Horizonte no próximo ano. Estava dividida entre o curso de psicologia e o de biologia. Mas se encantava com o desafio de ser professora. Teodoro perguntou-lhe pelas suas tranças. Um mimo da mãe. Então ela me perguntou se o meu Deus tinha um rosto. Como assim? Claro que tem. Era o único que eu conhecia dos catecismos. Eu não tinha alcançado a dimensão metafísica de sua pergunta. A indagação, porém não abandonou mais o meu espírito. Porque Deus precisava de um rosto? E porque precisava ser o rosto de um homem de longas barbas brancas? Como alguém tão singela como Júlia podia invadir desta forma minha vida. Um dia Júlia me contou uma história de tal sorte inusitada, que pela primeira vez eu formularia a pergunta que contaminou toda minha existência. Afinal, o que é o real? O que é fantasia? Onde termina um e começa outra. Bem ao seu estilo, Júlia me perguntou do nada se eu acreditava em espíritos. A pergunta era muito bizarra para ser uma pergunta sem propósito. Não era. Ela me disse então que seu avô podia vê-los. Toda minha vida fora aminada por questões políticas. Era fora de propósito comover-me questões, que eu entendia na esfera de crendices. De outra vez me perguntou se eu acreditava em casa mal assombrada. Do tipo que pegava fogo nos armários e caia pedra no telhado.No instante seguinte Júlia apontava para um ipê florido e ficava de tal forma embevecida com seu encantamento que as questões bizarras quedavam em outras paragens. Quando passamos no vestibular o volume das disciplinas cobrava toda nossa atenção. Nas férias do primeiro ano fomos acampar na serra do Cipó. Nossos planos podiam caber na história futura de duas ou três gerações. Falar em sede de vida era uma metáfora frágil para nosso espírito. Nossos corações, porém já haviam selado um destino comum.
THEIA VIVA - Tecnologia Social - Uma Revista Eletrônica
Tecnologia Social, sustentabilidade, economia solidária, cooperativismo, comércio justo, redes de cooperação solidária: o desenvolvimento destes domínios constitui o fundamento da THEIA VIVA.
terça-feira, 25 de dezembro de 2018
Capítulo II - Para uma menina de tranças. - (O Guardião da Lenda)
sexta-feira, 7 de setembro de 2018
Capítulo I – A lenda de cada um.- (O Guardião da Lenda)
I
- Onde moram os sonhos? Onde moram os sonhos?
Teodoro se sentia subjugado por esta idéia, mas descartava seu
exílio. Já era uma obsessão. Não, obsessão não era. Podia ser angústia. Como se
uma dimensão tão profunda em todos os mortais escapasse de acolhida. Podia ser.
Não como uma condicional. Os sonhos são afinal de uma ordem pouco afeita aos
ordenamentos. Se bastam, mesmo quando não pousam no absoluto. Teodoro descansou
o teclado disposto a procurar a face concreta do sol, da chuva e das árvores. Nela
se benzia exorcizando os fantasmas das inquietações. Porque afinal naufragar
nestes enredos que abdicaram de qualquer limite? Não fazia mesmo sentido
mínimo. Inda que perquirisse as entrelinhas de todas as escrituras. Deus não se
oculta nas prosopopéias. Afinal
não existe superlativo na face do incomensurável. Teodoro
acordou com o coração batendo nas têmporas. O sonho agora se lhe escapava e
junto o sono. Tinha os olhos despertos tal com a alma. Não podia refugiar-se da
dor da iniquidade. Sabia que era vítima de suas próprias escolhas. Teodoro
ainda sentia o impacto destas lembranças quando chegou à Lagoa Nova. Atravessou
a pequena ponte. Haveria de lembrar-se da qualidade suspeita das águas do
pequeno riacho. Cumprimentou o guardião da portaria e seguiu até sua chácara. A
casa pintada com as cores de tijolo queimado buscava combinar com toda a
paisagem. O quarto mergulhado na sombra era um contraponto ao frescor das
mangueiras. Nesta época do ano elas se mostravam coloridas com seus frutos
amarelos. Teodoro abriu a janela. O sol trazia vigor para um ambiente em que a
tristeza recolhia-se em lembranças ancestrais. Não sei o tempo. Nenhum dedo
humano veio para pousar digitais sobre tantos livros e documentos ali
depositados. Uma década? Um ano? Teodoro olhou pela janela; o jardim estava bem
cuidado. Impossível não registrar este estranho contraste.
- Vou deixar a porta aberta. Facilita a circulação do ar. Teodoro agora
visitava outros territórios. Os cômodos fechados retinham histórias de não sei
quanto tempo. Uma estranha sensação do passado de um tempo sem calendário. A
antiga biblioteca o que guardava? As traças parecem ter capitulado à robustez
daquelas capas de couro. De sua precária existência de inseto não havia
qualquer registro. Agora todas as janelas estavam abertas. As portas abertas.
Uma coluna de vento ganhou o espaço das brisas fazendo revoar o papel velho
sobre a mesa. Quanto tempo estes papéis aguardaram algum uso? Uma caneta que
fosse para lembretes. Datas de aniversários. Recomendações. Contas vencidas de
uma data que ninguém sabia. Agora o vento rouba-lhes qualquer função mais
nobre. Teodoro percebeu que a mobília da sala estava arrumada. Seu último
ocupante assim deixou. Não era nem mesmo uma casa antiga. Quanto tempo fechada?
Indagação que fazia de sua inutilidade os sinais de uma longa ausência. Talvez
nem tanto. Um ano, meses, poucos dias? Alguns fantasmas de certo apego familiar
gostavam deste aconchego. Mas estes também se foram. Teodoro tinha entrado na
casa pela área de serviço. A sala de visitas era o derradeiro cômodo. Ele
conservou a solenidade de todas as visitas que ali pousaram. Chamava atenção a
grande quantidade de quadros que repousavam na superfície neutra das paredes.
Uma combinação disforme que aceitava estilos de muitas eras. No meio da
paredetrês grandes retratos geometricamente dispostos. À direita meus avós
paternos e seus filhos. Conseguia reconhecer cada um deles. À esquerda meus
avós maternos e seus filhos. Sem convivência as faces não se apresentavam na
identidade dos meus tios. Gostaria de ter conhecido cada um deles. Minha mãe
relata aventuras que fariam o encanto das melhores obras de teatro. No centro
um retrato com meus pais e todos os meus irmãos. Teodoro se deteve neste quadro
com inesperada curiosidade. Havia uma promessa de mistério. Tinha uma clara
lembrança do dia que todos os irmãos dispostos por idade, meus pais ao centro,
aguardavam o registro desta imagem para história de cada um. Eu me detinha no
rosto de todos eles. Novos demais para abrigar feitos heroicos. Éramos nove
irmãos. No canto direito, sentado em um banquinho, um dos meninos guardava
minha identificação. Quem era? Fiz uma chamada visual e ali somavam dez. Eu
tenho certeza que na foto original não havia aquele menino e o seu banquinho.
Era um registro de família. Nestes assuntos meu pai tinha rigor. Nenhum
parente, nenhum vizinho, nenhum estranho se acomodaria neste banquete. No
entanto estava ali. Olhei seus traços, o feitio dos olhos e o traçado do nariz.
O cabelo louro, liso penteava-se para o lado, deixando uma risca na lateral da
cabeça. Era de moda. Usava uma camisa xadrez e um tipo de jardineira. Uma
bermuda acomodada por um tipo de suspensório, que revestia o peito. Não era o
estilo de roupa dos meus irmãos. Quem era aquele visitante? Como ele foi parar
em nosso retrato de família? Teodoro procurou no fundo dos olhos alguma
familiaridade. Em um instante aqueles olhos ganharam vida. Foi um destes
momentos de inquietação em que temos a sensação de uma ruptura do tempo. Seus
olhos agora me pareciam estranhamente familiar. Estranhamente ameaçador. Não.
Não era sua infância que ameaçava. Nem seu vestuário. Muito menos seu corte de
cabelo. Era sua presença. Algo que afrontava meu senso de realidade. Teodoro
fez um movimento em direção ao quadro. Ia levá-lo. Alguns dos meus irmãos
poderiam elucidar. Quem sabe meus pais. Meus avós. Invocarei meus antepassados
em seus préstimos geracionais. Não tinha um nome para ele. Assim chamei-o de
Remiau. Um apelido que vinha da fantasia. Meu irmão mais novo conhecia esta
história. Talvez conhecesse o mistério de sua presença. Talvez conhecesse mesmo
outros mistérios. Como do dia em que foi abduzido e deixado sem amparo no topo
da serra de Santa Helena. Eu sei que meus avós são também depositários de
mistérios. Pude ouvir de cada um os seus relatos. Nenhuma outra testemunha além
de minha memória. Nenhum diário, nenhuma carta conteria este registro. Já tinha
anoitecido quando Teodoro se deu conta do tempo. Lá fora uma densa bruma era
barreira para qualquer viagem. Os faróis do carro nada podiam contra estas
paredes da noite. Teodoro avaliou como mais prudente pernoitar ali mesmo. Os
préstimos de qualquer das camas requisitavam rápida faxina. Nem foi preciso
repetir. A sucessão de espirros denunciou um celeiro de ácaros. Menos de uma
hora depois a cama era convite perfeito para o necessário repouso. Teodoro já
tinha decidido que passaria os próximos dias na antiga casa de campo, próximo a
Sete Lagoas.O clima, a paisagem, a topografia em Minas Gerais possui uma enorme
diversidade. Neste ponto do estado as temperaturas são um pouco mais altas do
que as do sul. O ar seco e uma vegetação retorcida lembra que estamos na boca
do cerrado. Mas naquele dia, uma manhã de setembro, Teodoro foi brindado com
uma orquestra que combinava sons de pássaros, latido de cães e o ruído manso da
folhagem de uma mangueira próxima da casa. Lembrei-me do dia que da janela da
cozinha do apartamento dos pais de Júlia ficamos olhando o bailado das folhas
de uma árvore. Um parque do outro lado da rua. Era uma benção esta visão.
Também era primavera. De sorte que o colorido de flores de campo decorava o
bosque com a predominância do verde de suas folhas. Ficamos uns cinco minutos
apenas encantados com a harmonia daquele bailado. O som de passos requisitou a atenção
de Teodoro, que observou a nova presença. Ele tinha uma estatura franzina. O
sol de todos os dias já havia colorido seu tronco além de um simples bronzeado.
Valdir era também um homem do cerrado. Se fosse uma árvore seria um arbusto.
Baixo, mas muito resistente. Por um estranho motivo sua mulher não gostava do
seu nome. Chamava-o pelo sobrenome de família, Teixeira.
-Estou surpreso depois de tanto tempo. O senhor não mudou
nada. Vai voltar?
Eu não sabia. E não era tanto tempo. Talvez um ano. Agora eu
não tinha ideia para onde iríamos. Júlia provavelmente faria algumas mudanças.
Uma melhoria aqui e ali. E seria um lugar agradável para morarmos. Isto também
teria ainda que resolver. Gosto de imaginar que toda a casa ganharia mais
frescor se estivesse cercada com um belo gramado. Teixeira mantinha os dez mil
metros de terreno sempre muito limpo. Seu particular cuidado com o jardim da
casa causava ciúmes em dona Marilene, sua mulher.
-Seu Teodoro, todo dia eu peço pro Teixeira plantar umas
margaridas e umas flores do campo na frente de casa. Cadê? Faz nada.
Deixei-a desabafar o quanto queria. Mas o terreno era muito
pedregoso. Talvez por isto tivesse aquele ar seco. Até para caminhar entre as
árvores era difícil. Era só tropicão. Ai batia um desânimo daqueles. Teixeira
se desculpou pela poeira nos cômodos.
- Todo semana dou uma limpeza, senão tava muito pior.
Teixeira pediu desculpas quando me viu olhando atento para o
quadro de família.
- Um dia ele caiu assim sem menos, seu Teodoro. Tava passando
a vassoura na sala e ouvi o barulho. Nem dei conta de pronto. Depois vi o
buraco no meio dos outros quadros. Foi quando vi esse do meio no chão. Juro por
minha mãe que nem encostei nele. Deve ser o prego. Só aí percebi que o vidro
tinha quebrado. Mas prontinho pendurei de novo. Vi o senhor olhando. Depois
desconta o vidro do meu salário.
- Não tem problema Teixeira. Nem lembrava que tinha vidro.
- O senhor acredita em alma seu Teodoro?
- Que papo é este Teixeira? Alma do outro mundo. O que tem
as almas do outro mundo?
- Nada não. Já tem tempo. Eu pensei que o senhor tinha
voltado. Pra mais de uns par de meses. Ouvi os cachorros do seu vizinho latindo
e vim correndo. Aí já estranhei quando não vi seu carro. Nenhum carro. A luz da
sala tava acessa. E eu vi direitinho um menino correndo. Vai desculpar seu Teodoro.
Foi um arrepio só. Pensei que ia desmaiar. Voltei correndo e contei pra mulher.
Só no dia seguinte, dia alto, tive coragem de voltar lá. Guardei bem o dia
porque foi quando vi o quadro que tinha caído a primeira vez. Mas aí o vidro
não quebrou. Quebrou depois. Quando eu varria a sala. A lâmpada ainda acessa eu
tratei de apagar. Domingo a mulher mandou celebrar missa prasalmas penadas.
Teixeira não era homem de estranhamentos. Sua história foi o
bastante para redobrar minha curiosidade sobre o menino da fotografia. Na hora
me lembrei do professor Artur Kiev. Seu acervo era impressionante. Mas isto já
tinha mais de trinta anos. Se ele estivesse vivo estaria muito velhinho. Suas
pesquisas sobre episódios paranormais eram cuidadosas. O professor Kiev foi um
dos mais criteriosos que já conheci. Era um território em que o mistério confunde-se
fácil com toda sorte de invencionice. Logo Teixeira chamou minha atenção para
urgência de outras tarefas. Falou de uma praga que atacou os cajueiros. As
folhas escureciam e ficavam retorcidas. Os frutos pouco cresciam e logo
murchavam. Queria minha autorização para passar um pesticida. Minha posição
ainda era a mesma. Ia pesquisar algum remédio para curar os cajueiros. Ali bem
perto as abelhas nativas faziam morada. O antigo meliponário tinha merecido a
atenção do Teixeira.
- Colhi bem uns cinco litros todos os anos, seu Teodoro. Tá
lá em casa, nas garrafas. Do mesmo jeito que o senhor recomendou. Elas ficam
tombadas que nem vinho.
A explicação do Teixeira foi bastante para reforçar minha
proibição de usar os pesticidas.
- Elas vão na florada do cajueiro. Se colocarmos veneno elas
vão morrer. É por isto que deve ter alguma alma tomando conta das abelhinhas.
Teixeira não gostou da minha brincadeira e amuou.
-Fica tranquilo homem, isto é uma brincadeira de nada.
Pelo sim pelo não mudamos para o assunto da cerca. Teixeira
comentou que precisava reformar a cerca no fundo da chácara. Os postes de
eucalipto estavam apodrecendo e a cerca bambeando. Com esta prosa deixamos de
lado o assunto que agora ficava em silêncio em meu próprio espírito.O que
aconteceu com o retrato de minha família?Tive o cuidado de recolher dois velhos
livros de minha antiga biblioteca. Eram apontamentos do meu avô sobre episódios
do final do século XIX.Contava histórias datadas de 1887. Ali, abandonado à
minha imaginação viajei neste passado. Em meu DNA estavam impressas indagações
do mistério. Lembrei-me quando meu avô contou-me de uma sociedade secreta que
ele e alguns amigos tinham criado. Era moda vinda da França. O estatuto era
rigoroso. A traição era punida com a morte. Quando um dos confrades decidiu
abandonar o grupo a sociedade se reuniu para deliberar. Meu avô conta do forte
constrangimento. O estatuto tinha que ser cumprido. Ninguém se habilitou para
tão nefasta missão. Era um amigo de muito tempo que ia ser executado. Um dos
membros era um espanhol de sangue quente.
- Não precisa fazer sorteio nenhum. Eu mato o traidor.
O pesado silêncio selou a gravidade do momento. Não houve
execução. Poucos dias depois a sociedade estava desfeita. Meu avô terminou seu
relato. No seu livro de memórias não havia qualquer referência à “Mão dos
Justos”. Em minha curiosidade indaguei meu avô do propósito desta sociedade.
Havia uma inspiração na maçonaria. O grupo tinha também uma forte influência de
crenças esotéricas e espíritas. Um jornal da cidade fez uma denúncia.Seitas
satânicas estavam se organizando na cidade. Um panfleto anônimo cuidou de
desmentir o jornal. No final a assinatura: “Fraternidade Mãos dos Justos”.
Depois que a sociedade foi desfeita alguns dos integrantes voltaram a se reunir,
agora com o objetivo de pesquisar fenômenos paranormais. Meu avô mantinha um
segredo de confessionário sobre acontecimentos anômalos ocorridos em suas
reuniões. Teodoro tinha sua curiosidade ainda mais aguçada. Tinha ligação com a
Opus Dei? Com os Illuminati? Com os Templários? Meu avô apenas me olhava com
uma severidade que não comportava contestações. Teodoro se deu conta de seus
compromissos. Tinha combinado com Júlia retornar antes do almoço. Já passava
das onze. Para Teodoro todas estas dúvidas apenas selavam um compromisso com
uma investigação mais minuciosa. O cotidiano cobrava praticidade. Pedi dona Marilene
que caprichasse na limpeza. Queria passar o fim de semana na chácara com Júlia.
Nossos filhos e netos viriam de São Paulo. Há muito planejamos esta
confraternização. Seria um verdadeiro reencontro com nossa própria infância. Nossos
netos estavam crescendo e quase nada sabiam do encantamento do cerrado. A
lembrança dos netos acendeu outras lembranças. Teodoro logo faria setenta anos.
Fazer planos para o futuro era algo que trazia algum desconforto. Mas havia um
forte desejo de morar em uma casa de praia. E este era um projeto que encantava
igualmente Júlia. Viajando em seus pensamentos Teodoro não se deu conta do
trajeto de sua chácara até a casa de sua mãe. Chegou junto com um agente dos
correios. Foi uma enorme surpresa.A correspondência tinha meu nome como
destinatário. A surpresa cresceu como uma avalanche. A remetente assinavaHelen Lefebvre. A localização, Chartres – France. E em baixo
um carimbo identificando o Institut Monroe France – Exploration de
laConscience.Teodoro segurou a correspondência com a expectativa de um menino
em véspera de natal. O coração pulsava na garganta. Depois de tanto tempo.
Difícil acreditar. Em um lampejo Teodoro voltou no tempo. Mais de vinte anos.
Podia ser. Viu mentalmente o rosto de Juracy e toda sua fantástica história.Lembrou-se
do dia que tudo aconteceu. Agora a própria Helen envia uma correspondência. Teodoro
entrou na casa de sua mãe com o envelope ainda lacrado. Sentou-se no sofá da
sala. Com uma urgência de muitos anos rasgou o envelope pela lateral. Do seu
interior retirou uma espécie de manual. O principal destaque da capa eram as
palavrasRobert Allan Monroe – “Journeys Out oftheBody”. Teodoro
lembrou-se que este era o nome em inglês do livro em que Monroe relata suas
experiências de projeção da consciência. Tinha muitos nomes. Viagem astral,
experiência fora do corpo e outros parecidos. Era muito estranho que depois de
tantos anos esta correspondência tenha chegado ao endereço de minha mãe aqui em
Sete Lagoas. O manual não continha nada de novo além do que eu já tinha lido no
livro. Nada de novo. Mas ali estava. Preciso descobrir o que pretende Helen Lefebvre. Se ela estiver viva estará
hoje com pouco mais de noventa anos. Prefiro acreditar que foi uma
correspondência que ficou perdida. E por alguma razão o serviço de correio
rastreou meu último endereço. Teodoro sabia que a hipótese era pouco
verossímil. E sabia que não descansaria enquanto não tivesse uma explicação
minimamente razoável. Afinal esta tem sido minha jornada desde sempre. E é
possível que não haja nenhum outro motivo além de ser apenas o caminho que
tenho trilhado. Suas pegadas estavam cravadas em cada instante de sua vida. Teodoro
sabia disto com a força de uma obsessão. Esta era parte de sua lenda pessoal.
sexta-feira, 13 de julho de 2018
A Energia dos Mitos Fundadores: nossa busca de uma destinação teleológica para a humanidade rumo ao hiper-coletivo.
Meu trabalho de conclusão do curso de Filosofia foi intitulado: "Mitos Fundadores, Crises e Pespectivas do Partido dos Trabalhadores". A professora Marilena Chaui desenvolve o conceito dos "mitos fundadores" na história do Brasil. Recupero uma referência da professora: (...) “À maneira de todo 'fundatio' este mito impõe um vínculo interno com o passado como origem, isto é, com um passado que não cessa nunca, que se conserva perenemente presente e, por isto mesmo, não permite o trabalho da diferença temporal e da compreensão do presente enquanto tal"(...).
Para mim foi um achado esta contribuição de Chauí. Depois encontrei em diversos outros autores o papel dos Mitos, com uma força muito maior do que eu poderia originalmente conceber: bons exemplos estão no estruturalismo, que nos fala de um Inconsciente Estrutural e dos conceitos de arquétipo trabalhado por Jung. Porque fui buscar estas fontes? Sempre me perguntei sobre a origem da energia mobilizadora de alguns conceitos, como por exemplo o de "libertação". Eu tive vários companheiros que morreram sob tortura, colocando o ideal de liberdade acima da própria vida. Havia uma motivação que eu chamaria de "não-racional" e uma convicção de que no final a Verdade venceria. Esta é no fundo a visão do Reino, proclamada pelas religiões abraamicas, que está presente no judaismo (Marx era judeu) e no cristianismo e, neste sentido, é uma visão teleológica. O Bem é para o onde caminha inexoravelmente a história. Se a história possui uma destinação teleológica qual o sentido de nossas escolhas e o papel da nossa liberdade? Somos de alguma forma prisioneiros de um final que já está escrito? Esta é a dimensão ontológica do Ser que estudamos?
É possível que encontremos em Sartre um esforço de elaborar esta reflexão. Senão vejamos.
O ano de 1977 foi particularmente simbólico para muitos de minha geração. A grande maioria dos partidos de esquerda, que exerciam alguma ação contra o regime militar no Brasil, já estava dizimada. Um sentimento de desesperança em relação ao nosso sonho socialista teimava em ganhar proporções. Foi neste ambiente que proclamei, no poema acima, como uma condenação continuar buscando a liberdade e a vida. Carlos Takaoka, um artista plástico, que ganhara há pouco tempo a liberdade, depois de ficar cinco anos na prisão, como prisioneiro político, leu meu poema e retrucou-me com outro poema, em que ele recusava a vida como uma condenação, mas como um ato de liberdade. Sem sabermos estávamos no coração dos temas mais caros ao filósofo Jean Paul Sartre. Mesmo porque a visão que tínhamos dele era de um anarquista, que com sua pregação criava vacilações nas opções políticas do povo francês. Passados 30 anos vejo-me face a face com o Anjo Vingador. Se a história não possui um sentido teleológico qual a nossa bússola? E se Deus não nos presenteará com a Terra onde jorra o Leite e o Mel, resgatando nossos pecados da vacilação pequena burguesa, o que será de nós? Enfim que espécie de prisão é a vida, onde construímos nossos projetos de liberdade e prometemos aos filhos certos atos de bravura? Tomamos na prateleira o livro Sentimentos do Mundo, do poeta Carlos Drummond e defrontamos com um trecho do poema Elegia 1938 (1938?):
“(...) Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
E sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.(...)”
E no final o poeta proclama:
“(...) Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.(...)”
Nem a deliciosa alienação do sono, nem o conforto da impotência nos resgatam, nos levando a aceitar a “injusta distribuição” no sossego de não fazer qualquer escolha.
Sartre fazendo a defesa de sua ética existencialista (e sua dimensão profundamente humanista) nos lembra: - “O que as pessoas, obscuramente, sentem, e que as atemoriza, é que o covarde que nós lhe apresentamos é o culpado por sua covardia. O que as pessoas querem é que nasçamos covardes ou heróis.” Porque afinal se em minha covardia ou em minha alienação não posso sozinho dinamitar Manhattan, porque me responsabilizam pela guerra, pela chuva e o desemprego? “O que o existencialista afirma é que o covarde se faz covarde, que o herói se faz herói” – diz Sartre. E que dinamitar Manhattan ou não é um escolha inteiramente minha, pela qual responderei. E que se este ato expressar uma atitude voluntariosa ou conseqüente será uma conseqüência de minha exclusiva liberdade.
Somos então prisioneiros da liberdade? Não é isto que nos afirma Sartre, de vez que ser prisioneiro já é um condicionante. Parece existir aí um aparente paradoxo e é sobre este ponto que vou dirigir minhas reflexões.
Somos condenados à liberdade? Farei algumas reflexões:
Sartre é uma figura emblemática e em minha opinião o mais importante filósofo do século XX. Manteve uma vida ativa como professor, escritor, crítico social, ativista político, deixando um legado na filosofia que ainda não foi inteiramente assimilado: o compromisso humanista existencial com a liberdade. Sartre fez esta trajetória sem cair em qualquer forma de niilismo e/ou alienação. Ao contrário: a existência humana é a única ancoragem para sua ética, construída como um ato fundamental de escolha, dentro da liberdade. Eu gosto da metáfora de Adão e Eva expulsos do paraíso. O que é o paraíso? Um estado de não escolha, de total indiferenciação. A comerem o fruto da Árvore do Bem e do Mal eles ganham consciência (perdem a ingenuidade) e entram em um estado que precisam fazer escolhas. Eles são condenados a escolhas. Qualquer que seja a escolha possível, com todos os limites da alienação, dos condicionamentos culturais e outros limites, estará sempre condenado a uma escolha. E este é um ato solitário, ainda que se dê no espaço social e na história. Porque escolho não fazer apropriações individuais da produção social? Nada me obriga a isto. Porque escolho que a vida deve ser defendida como valor supremo? Instinto de conservação da espécie? Pode ser. Mas porque este mesmo instinto não me impede de escolher dizimar meus iguais com armas de destruição em massa, com políticas de exclusão social, com atos de colonialismo e dominação. Que instinto é este? E não podemos fugir do seu exameE se Deus de fato não existir? Será esta de fato a pergunta relevante? Vejo dois conceitos caminharem muito próximo: o de materialismo e ateísmo. Qual a relevância desta proposta? Excluindo as atitudes mais neuróticas, que transformam qualquer visão em fundamentalismo, a questão central deveria ser outra; sendo mais preciso - deveria caminhar na direção de nos olharmos como humanos. Quais nossas singularidades? Sabemos que somos herdeiros do Big Ban. Isto não é pouco. Esta ancestralidade me liga à história do próprio universo. Sabemos nossa condição de seres relacionais. Somos gregários. E principalmente, sabemos que sabemos todas estas coisas. Mas somos seres que possuem a mesma trajetória dos entes vivos: somos efêmeros. Somos realmente efêmeros? Se o único espaço em que posso realizar de minha experiência de vida é o agora, cada agora contém uma eternidade. A morte soe acontecer. "Todavia, toda vida é indagação do achado" (diz Drummond). Indagação do depois de agora. Daqui a 10 dias vence o aluguel. Não tenho como pagar hoje e não tenho perspectiva de pagá-lo no depois de hoje. Meu sofrimento do depois de hoje é agora. Por isto sofro agora com minha finitude. Desta forma me convém acreditar que sou infinito. Afinal uma série numérica é infinita! Porque eu também não poderia sê-lo? E se for assim vou vier agora minha eternidade: o pós tempo - o pós história. E é provável que o pós tempo exista. Pois se o tempo é, o é em face de do não-tempo. Ou seja, posso aliviar agora meu sofrimento com a vivência do não-tempo. De mais a mais a experiência do divino é em mim que se concreta. Este humano-divino é uma experiência real. Nela esta minha transcendência e minha imanência. E em todos os casos a pergunta inicial não faz qualquer sentido, porque equivale a perguntar - e se Deus existir? Este divino continua sendo uma experiência que se realiza agora, em mim e para mim.
A impressão que ficamos após a leitura de "O Existencialismo é um Humanismo" é de que Sartre, embora afirme em contrário, confere à experiência de liberdade de escolha uma dimensão divina; ele absolutiza a responsabilidade do humano singular, transformando esta escolha em um padrão de transcendência dos seres singulares para os seres "categoria". Sartre repete o tempo todo sobre a inexistência de uma natureza humana, mas impressão que tenho é que ele deixa de considerar as contribuições da antropologia, da psicologia social e da ecologia social. O conceito de Teia da Vida, presente na Teoria de Santiago (Maturana e Varela) nos lembra que a cognição é uma propriedade da vida; que existe um padrão de rede desde as micro-particulas até os conjuntos mais complexos. Um padrão que é anterior ao próprio surgimento dos organismos vivos. Um padrão que está presente na organização da matéria. Este padrão cria uma ética da ecologia profunda, onde a liberdade é a liberdade comprometida, mas a liberdade possível. Não existe outra forma de liberdade. A escolha é a escolha possível e condicionada por este padrão: pode ser a cultura, o inconsciente (Freud e Jung) e visão de classe (Marx). Sartre parece conferir demasiado valor ao cogito (Kant), deixando de considerar dimensões como a intuição nos processos de escolha. A intuição é uma experiência (como tal um fenômeno e uma fato da existência) que nos confere um sentido de certeza. É com base nesta certeza que faço minhas escolhas. Não me parece que haja um grau de liberdade significativo quando o que me movimenta é a certeza, resultante de um insigt.
Conhecer Sartre é conhecer sua motivação íntima: como esta responsabilidade que ele nos conta se constrói na história. Sartre sabia que existem pelo menos dois grandes filtros que balizam nossas escolhas: o inconsciente (Freud) e a visão de classe (Marx). O limite íntimo destas escolhas é que me parece estar em questão. Volto minha lembrança a Carlos Takaoka e a todos como ele que passaram por provações físicas e psicológicas profundas, como os prisioneiros de guerra, como Sartre. De todas as guerras. Nunca soube se o Takaoka era ateu ou não, se era materialista ou idealista. Naturalmente o Takaoka possuía forte influência de usa origem oriental. Falávamos sobre a natureza e sentido de nossas escolhas e do nosso engajamento político. Criticávamos as noções de necessidade (imperativos) histórica, como muito determinista para qualquer forma de liberdade. Então ele me contou o seguinte Koan (trata-se um dito ou ato de um mestre Zen).
- Um jovem monge perguntou ao seu mestre: O que é mais importante: carregar o Buda ou lavar os pratos? Ao que o mestre respondeu: O mais importante é lavar o Buda e carregar os pratos.
O pensamento ocidental é muito marcado por alternativas excludentes e o Takaoka me lembrava que uma ética assentada em escolhas excludentes era estranha para ele. Porque existindo ou não uma divindade a sacralidade dos humanos justificavam uma opção humanista. E este provavelmente foi o maior legado de Sartre. Novamente citando Drummond ele nos lembra em sua poesia nossas escolhas pessoais de uma ordem superior e justa. Mas são nossas escolhas. Ninguém nos obriga a isto. Nenhum determinismo da natureza ou da história, nenhum determinismo transcendental teológico. Afinal não existe nenhuma racionalidade a ser desvendada. Todas elas, incluindo sua falta, resultam de nossas escolhas. Não há o que decifrar. Existem apenas escolhas Mas parecem ser escolhas que dormem e às vezes acordam, no mais fundo de nossa intuição. No primeiro e último verso do poema Nosso Tempo, Drummond brinda-nos com estas palavras:
"Este é tempo de partido,
tempo de homens partidos.
Em vão percorremos volumes,
viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
as leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se na pedra.
(...)
O poeta
declina de toda responsabilidade
na marcha do mundo capitalista
e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas
promete ajudar
a destruí-lo
como uma pedreira, uma floresta,
um verme
segunda-feira, 30 de outubro de 2017
O Voo da Coruja de Frederico Drummond
Um livro sobre
realidades paralelas
Mani Alvarez*
Um dia, em Campinas,
reencontrei inesperadamente um antigo amigo de infância. Eu não sabia que era
ele que havia se matriculado no meu curso a distância sobre psicologia
Transpessoal e agora vinha para o nosso encontro presencial. E com ele vinha junto
parte da minha história, em Sete Lagoas. Foi uma alegria muito grande reencontrá-lo.
Me lembro bem, havia
um muro que dividia nossas casas, e por lá transitávamos sempre que queríamos
burlar as proibições maternas. Desse muro eu chamava Wanda, sua irmã e minha
amiga para compartilhar minha enorme revolta, porque minha mãe não havia me
deixado sair para brincar. Tudo que vivíamos era de forma absoluta. Ali, cada
uma do seu lado do muro, equilibrando num toco de madeira, nós planejávamos
nossa fuga, nossa vingança, nosso sonho de justiça... aquele era o nosso muro
das lamentações...
Quando, anos mais
tarde, reencontrei o Frederico em Campinas, ele não era mais aquele menino que
jogava mamona nas meninas nem zombava de nossa rebeldia feminina. Pelo
contrário, trazia em sua bagagem uma rica trajetória pessoal de consciência
intelectual e política.
Durante o curso de
psicologia Transpessoal pude conhecer um homem adulto, sofrido, profundamente
marcado por experiências dolorosas em sua vida. Mas, persistente na sua ânsia
por experimentar a ‘magia da jornada humana’.
Penso que, em algum
momento de sua vida, surgiu a inquietação para buscar, ‘no cotidiano seus
melhores materiais para um novo soneto, e assim nasceu o poeta e o seu Vôo da
Coruja. Impossível lê-lo sem se deixar tomar pelo espanto. A mente racional
entra em colapso. Quem é quem, afinal? Que tempo/espaço é esse? Na (des)ordem
dos fatos a ordem das lembranças. “De que universo estamos falando? Que
território é este em que o mistério é a norma?”
Sim, Áries, um
personagem onírico, o instruiu para seguir sempre sua intuição. E assim ‘teve
início uma jornada, sem mapas, sem destino. Na mala o medo e algumas vezes a
esperança’.
E o poeta avança: ‘O
medo como doença. O medo como poesia. O medo como regente de inumeráveis
matizes das palavras e sons da fala humana. O medo de Deus’.
Ás vezes, um lampejo,
e ele fala da ‘felicidade como um composto químico’. Logo em seguida, um sentimento de ‘falência e
incompetência’. Ao se lembrar de antigos companheiros de militância que foram
mutilados pela ditadura, e que, ‘se hoje não falam, não é porque lhes
subtraíram a língua, não falam porque lhes subtraíram a alma’. Todo seu livro é
uma revivência do luto profundo que envolveu sua alma por longos anos.
Mas o menino Frederico trazia ainda na memória
o riso de um tempo em que se acreditava invencível. E é com esse riso travesso
que ele vai conduzindo o leitor em suas memórias de militância política, quando
vivia a utopia messiânica de igualdade e justiça na Terra, quando aprendeu
novas formas de economia solidária e cooperativa, quando mergulhou na magia da
realidade xamânica e pôde questionar as crenças limitantes das (ditas)
verdades-acadêmicas.
É bem verdade que
suas leituras de física quântica o haviam preparado para essa aventura poética
de lançar-se para além de tudo e de todos. Mas foi uma coruja que o colocou à
prova, desafiando-o a voar para além do espaço e do tempo. E reencontrar a si
mesmo com outras vestes. E se ver cara a cara com a morte, e viver todas as
nuances do medo. “Decifra-me ou devoro-te’.
E foi assim que
Frederico ‘experimentou paz ao descobrir que podia viver sem respostas’.
Afinal, se tudo que conhecera em sua vida -- ‘meus medos, minhas inquietações,
minhas buscas era tudo uma miragem?’ – não havia mais a que se apegar.
Depois de desconstruir
e reconstruir a realidade de mil formas, ele encontra, finalmente, a estrada do
Caminho Sagrado, aprende a honrar os valores da Grande Mãe e a compreender que
seu corpo/território, suas águas, suas riquezas, não podem jamais serem
demarcados, comercializados, explorados.
A coruja é o espírito
que rege a filosofia. Sei que, de algum lugar ela o adverte, contudo: sim, há
um solo que é sagrado. Isto é real? Ou é produto de minha imaginação?
*Mani Alvarez
doutora em Filosofia
da Educação pela Unicamp
e Especialista em
picologia Transpessoal
manialvarez44@gmail.com
domingo, 6 de agosto de 2017
No Portal do Templo de Guaicui
(...) Depois que meu avô faleceu sua biblioteca
ficou aos cuidados da academia de letras da cidade. Em uma caixa de papelão um
segredo estava selado. A caixa foi lacrada com fitas adesivas. Na lateral da
caixa um pincel atômico proclamava um decreto: “Reservado.” “Não abra”. A
curiosidade sobre o conteúdo da caixa ganhou o contorno de muitas lendas. De
lendas e do mistério. Meu pai e meus tios decidiram manter a caixa fora do
acervo da biblioteca. Tio George era um solteirão de meia idade. Disseram que
ele seria o guardião daquele tesouro. E assim foi. Francisco estava morando em
São Paulo quando o tio George ligou. A conversa que se seguiu não podia ser
mais insólita. Em um sonho tio George viu quando o vovô apareceu-lhe saindo de
um elevador. Ele estava no saguão de um templo em ruínas. Tio George conta que
numa parede lateral havia uma porta que dava acesso a um elevador. Ele havia
apertado o botão de chamada quando o elevador parou no térreo. Meu avô usava um
terno de gala, um fraque que comportava colete e gravata borboleta. Tinha nas
mãos a caixa lacrada. Como um ato de grande solenidade entregou-a ao tio
George. Tudo em silêncio. Naquele momento, sem nenhuma palavra, nenhum som,
George disse ter a certeza que seria eu o novo guardião. Pouco mais de vinte
dias e a caixa estava sendo entregue em meu endereço. Tio George teve o cuidado
de revesti-la com um novo papel. Queria precaver algum acidente. Júlia entendia
que eu devia abrir o volume. Tinha a outorga para conhecer seu conteúdo. Se eu
era o destinatário isto devia fazer algum sentido. Fui invadido por um temor
ancestral. “A Caixa de Pandora”. As palavras gravadas com o pincel atômico
ganharam vida. “Não Abra”. Era uma ordem. Meu avô agora era um leão e sua voz
um rugido imperativo. Guardei o volume em meu escritório. No fundo eu esperava
que meu pai ou algum tio passasse uma orientação. E como estava a caixa ficou.
Viajando nestas lembranças Francisco pouco se deu conta do seu destino. Tinha
saído com o sol em direção a Pirapora. Júlia combinara visitar suas amigas de
infância. Sem correria cobríamos a distância em pouco mais de três horas. No
inverno a temperatura ficava mais suportável. Agora fazia pouco mais de 22
graus. No passado já havíamos pegado temperaturas de 45 graus. Esta é ainda uma
região histórica para o rio São Francisco. Suas glórias estão em muitas marcas
da cidade. Sua história está em seu passado. Na memória de um leito que padecia
do descaso. Que predadores carregamos em nossa alma capaz de tanta destruição?
O leito do nosso próprio corpo. Depois do almoço na casa de Helena o sono veio
para abrandar nosso cansaço. A noite a conversa correu solta. Logo éramos um
grupo, eu e dez mulheres. Todas já tinham passado dos cinquenta anos. Havia
muita história naquela varanda. A cerveja gelada e os tira gostos eram
desculpas desnecessárias. A generosidade e fraternidade era tamanha que nos
bastava como qualquer forma de alimento. Mulheres guerreiras que contavam os
desafios do cotidiano com a intensidade de um gladiador. Foi então que ouvi
pela primeira vez a história de um templo em ruínas construído no final do
século XVII. Ficava a trinta quilômetros dali. Era um feito do bandeirante
Fernão Dias. O nome da região, Barra do Guaicui, nas margens do rio das Velhas.
Conhecer este local ganhou em mim um sentido quase obsessivo. Ali abrigavam-se
respostas para muitas inquietações. Combinamos para o dia seguinte, depois do
café. Foi uma noite de tumultos. Primeiro uma insônia que me consumiu até às
duas horas da manhã. O sono chegou ruidoso. Imagens sobrepunham-se com a
vertigem de um tobogã. Rostos conhecidos e desconhecidos perfilavam sem compor
qualquer sentido. Repentinamente ganhavam outras formas ou se decompunham como
pastos para os abutres. Eram cinco horas quando decidi levantar, buscando em um
banho frio o resgate de minha sanidade. No caminho Helena foi contando detalhes
com o esmero de uma professora. Ninguém tem certeza do que é história e o que é
lenda. Mas as ruínas da igreja estão bem aqui, com toda sua imponência. Isto
todos podemos ver. Helena apontou em direção a uma antiga construção,
entranhada nas raízes de uma frondosa árvore. Nosso carro tinha que seguir
agora por um estreito caminho. Mas já podíamos ver um extenso trecho do rio das
Velhas. Estávamos no centro da barra do Guaicui, no município de Várzea da
Palma. Este é um ponto de entroncamento com o rio São Francisco. No século XVII
o bandeirante Fernão Dias percorria a região a procura de pedras preciosas. Ele
teria mandado construir uma igreja de pedra, que ficou inacabada em decorrência
de uma peste que dizimou parte de sua expedição. Pouco tempo depois Fernão Dias
morreu de malária. Helena parou um instante para recuperar o fôlego. Paramos
nosso carro em um pequeno platô lateral. Seguimos a pé. Era impossível não nos
rendermos a este cenário. O rio das Velhas desfraldava-se aos nossos olhos em
toda sua exuberância. Naquela região suas águas eram calmas e profundas. O
barro coloria toda a superfície. Mais à frente ele desaguaria no São Francisco.
Um ato de amor da natureza. Estávamos em solo sagrado. Não porque assim alguém
decidiu. Sagrado porque assim experimentávamos esta dimensão em nosso espírito.
Caminhamos em silêncio. Um pouco mais e agora se revelava o monumento de pedra.
Ruínas de um templo. O acervo natural ainda hoje impressiona. E não é para
menos. Histórias e lendas ganharam a dimensão do mistério na versão acalorada dos
agentes de turismo. Encontrei Tonho, sentado em um banquinho, enquanto um toco
de madeira servia de mesa para suas tarefas. Ele arrumava pequenos mapas e
muitos papéis em uma antiga pasta de couro. Prestativo, deitou falação. Foi
então que Francisco soube que aquelas ruínas eram da igreja do Bom Jesus de
Matosinhos. Agora, há pouco mais de um metro do templo senti como se toda
aquela construção me engolisse. Era como se à minha volta todos tivessem
desaparecido. Um passe de mágica. Impossível descrever toda emoção. O
arrebatamento era verdadeiro. Um intrincado sistema de raízes subia pelas
paredes a uma altura superior a três metros. No topo o colosso verde de uma
árvore abria-se como guarda sol gigante. Encostei-me na lateral de um dos
portais. Sentado em um degrau de pedra deixei-me viajar nas entranhas daquele
cenário. Como por encanto eu me via no interior do sonho do tio George. Não era
apenas um observador. Nenhuma dúvida obstruía meus movimentos. Solenemente meu
avô, em seu traje de gala, fundia-se às raízes da grande árvore desaparecendo
no meio de sua seiva. Solenemente tio George me entregava a misteriosa caixa.
Enfim seria apresentado ao seu conteúdo. Não sei quanto tempo fiquei mergulhado
neste êxtase. Não importa. O desafio de Pandora poderia ser confrontado. Francisco
sentiu um leve toque das mãos de Júlia. Um toque que conferia concretude à
minha certeza. (...)
Trecho do livro: Pegadas na Trilha de Frederico Ozanam Drummond - Agosto de 2017
sexta-feira, 21 de julho de 2017
Voo da Coruja: Uma conspiração pela vida.
Quero fazer um agradecimento público à minha irmã Wanda Drummond, que se dispôs, de forma paciente, a escrever uma das apresentações do meu livro O Voo da Coruja. Wanda é professora universitária aposentada e é especialista em Teoria da Literatura. Agradeço também a Mani Alvarez, vivendo atualmente em Campinas onde dirige o Instituto Clasi. Mani é doutora em Filosofia da Educação pela Unicamp e Especialista em psicologia transpessoal. Agradeço ainda o carinho de Luza, Lucia Drummond Saturnino Dupin , minha esposa, que de forma paciente se dispôs a fazer uma leitura de todo o original do livro, realizando sempre excelentes sugestões. Não posso esquecer meus irmãos Marcilio O. Drummond, Tina Drummond, Leonardo H Drummond, Quin Drummond, Maria Ines Drummond, Ana Lucia, meu cunhado Abel que aceitaram ler os originais, fazendo suas recomendações. Faço um agradecimento particular ao meu irmão João Batista Drummond pelo seu zelo na edição do livro. Deixo um agradecimento póstumo a minha primeira esposa Lenir, hoje habitando a morada do Grande Espírito, pelas suas vivências que inspiraram partes importantes do livro. Muitos outros personagens estiveram presentes em minhas vivências, como mestres zelosos auxiliando-me no meu processo de autogenia, conceito da terminologia proposta pelo criador da filosofia clinica no Brasil, o filósofo Lúcio Packter . Assim agradeço também a filosofa clínica Marta Claus , que realizou comigo a etapa da clínica pedagógica, período da formação em que o terapeuta se submete a todo o método da filosofia clínica. O resultado desta verdadeira conspiração positiva da vida é O Voo da Coruja. Sejam bem vindos a esta grande festa. Vocês vão gostar.
A Magia d'O Voo da Coruja
No topo das ruínas da antiga Igreja Senhor Bom Jesus do Matosinho, na Barra do Guaicuí, às margens do Rio das Velhas, distante apenas 24 km de Pirapora (MG), a Coruja é a Senhora dos dois Reinos. Lá me defrontei com um dos seus portais. O Portal da Torre de Pedra. Este igreja começou a ser construída no século XVII pelo bandeirante Fernão Dias. Um praga dizimou a maior parte dos trabalhadores e moradores locais. Assim a construção foi interrompida. Uma história verdadeira? Não sei. Talvez uma ficção, talvez. Como no jogo do Tarot a Torre pode significar estruturaras do psiquismo que precisam ser desconstruídas. E como no mito da Fênix o renascimento de novas estruturas é sempre um novo ciclo. O próprio mistério da vida. A beleza do seu movimento. (A capa do livro é um foto que tirei deste portal de pedra).
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