Meu trabalho de conclusão do curso de Filosofia foi intitulado: "Mitos Fundadores, Crises e Pespectivas do Partido dos Trabalhadores". A professora Marilena Chaui desenvolve o conceito dos "mitos fundadores" na história do Brasil. Recupero uma referência da professora: (...) “À maneira de todo 'fundatio' este mito impõe um vínculo interno com o passado como origem, isto é, com um passado que não cessa nunca, que se conserva perenemente presente e, por isto mesmo, não permite o trabalho da diferença temporal e da compreensão do presente enquanto tal"(...).
Para mim foi um achado esta contribuição de Chauí. Depois encontrei em diversos outros autores o papel dos Mitos, com uma força muito maior do que eu poderia originalmente conceber: bons exemplos estão no estruturalismo, que nos fala de um Inconsciente Estrutural e dos conceitos de arquétipo trabalhado por Jung. Porque fui buscar estas fontes? Sempre me perguntei sobre a origem da energia mobilizadora de alguns conceitos, como por exemplo o de "libertação". Eu tive vários companheiros que morreram sob tortura, colocando o ideal de liberdade acima da própria vida. Havia uma motivação que eu chamaria de "não-racional" e uma convicção de que no final a Verdade venceria. Esta é no fundo a visão do Reino, proclamada pelas religiões abraamicas, que está presente no judaismo (Marx era judeu) e no cristianismo e, neste sentido, é uma visão teleológica. O Bem é para o onde caminha inexoravelmente a história. Se a história possui uma destinação teleológica qual o sentido de nossas escolhas e o papel da nossa liberdade? Somos de alguma forma prisioneiros de um final que já está escrito? Esta é a dimensão ontológica do Ser que estudamos?
É possível que encontremos em Sartre um esforço de elaborar esta reflexão. Senão vejamos.
O ano de 1977 foi particularmente simbólico para muitos de minha geração. A grande maioria dos partidos de esquerda, que exerciam alguma ação contra o regime militar no Brasil, já estava dizimada. Um sentimento de desesperança em relação ao nosso sonho socialista teimava em ganhar proporções. Foi neste ambiente que proclamei, no poema acima, como uma condenação continuar buscando a liberdade e a vida. Carlos Takaoka, um artista plástico, que ganhara há pouco tempo a liberdade, depois de ficar cinco anos na prisão, como prisioneiro político, leu meu poema e retrucou-me com outro poema, em que ele recusava a vida como uma condenação, mas como um ato de liberdade. Sem sabermos estávamos no coração dos temas mais caros ao filósofo Jean Paul Sartre. Mesmo porque a visão que tínhamos dele era de um anarquista, que com sua pregação criava vacilações nas opções políticas do povo francês. Passados 30 anos vejo-me face a face com o Anjo Vingador. Se a história não possui um sentido teleológico qual a nossa bússola? E se Deus não nos presenteará com a Terra onde jorra o Leite e o Mel, resgatando nossos pecados da vacilação pequena burguesa, o que será de nós? Enfim que espécie de prisão é a vida, onde construímos nossos projetos de liberdade e prometemos aos filhos certos atos de bravura? Tomamos na prateleira o livro Sentimentos do Mundo, do poeta Carlos Drummond e defrontamos com um trecho do poema Elegia 1938 (1938?):
“(...) Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
E sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.(...)”
E no final o poeta proclama:
“(...) Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.(...)”
Nem a deliciosa alienação do sono, nem o conforto da impotência nos resgatam, nos levando a aceitar a “injusta distribuição” no sossego de não fazer qualquer escolha.
Sartre fazendo a defesa de sua ética existencialista (e sua dimensão profundamente humanista) nos lembra: - “O que as pessoas, obscuramente, sentem, e que as atemoriza, é que o covarde que nós lhe apresentamos é o culpado por sua covardia. O que as pessoas querem é que nasçamos covardes ou heróis.” Porque afinal se em minha covardia ou em minha alienação não posso sozinho dinamitar Manhattan, porque me responsabilizam pela guerra, pela chuva e o desemprego? “O que o existencialista afirma é que o covarde se faz covarde, que o herói se faz herói” – diz Sartre. E que dinamitar Manhattan ou não é um escolha inteiramente minha, pela qual responderei. E que se este ato expressar uma atitude voluntariosa ou conseqüente será uma conseqüência de minha exclusiva liberdade.
Somos então prisioneiros da liberdade? Não é isto que nos afirma Sartre, de vez que ser prisioneiro já é um condicionante. Parece existir aí um aparente paradoxo e é sobre este ponto que vou dirigir minhas reflexões.
Somos condenados à liberdade? Farei algumas reflexões:
Sartre é uma figura emblemática e em minha opinião o mais importante filósofo do século XX. Manteve uma vida ativa como professor, escritor, crítico social, ativista político, deixando um legado na filosofia que ainda não foi inteiramente assimilado: o compromisso humanista existencial com a liberdade. Sartre fez esta trajetória sem cair em qualquer forma de niilismo e/ou alienação. Ao contrário: a existência humana é a única ancoragem para sua ética, construída como um ato fundamental de escolha, dentro da liberdade. Eu gosto da metáfora de Adão e Eva expulsos do paraíso. O que é o paraíso? Um estado de não escolha, de total indiferenciação. A comerem o fruto da Árvore do Bem e do Mal eles ganham consciência (perdem a ingenuidade) e entram em um estado que precisam fazer escolhas. Eles são condenados a escolhas. Qualquer que seja a escolha possível, com todos os limites da alienação, dos condicionamentos culturais e outros limites, estará sempre condenado a uma escolha. E este é um ato solitário, ainda que se dê no espaço social e na história. Porque escolho não fazer apropriações individuais da produção social? Nada me obriga a isto. Porque escolho que a vida deve ser defendida como valor supremo? Instinto de conservação da espécie? Pode ser. Mas porque este mesmo instinto não me impede de escolher dizimar meus iguais com armas de destruição em massa, com políticas de exclusão social, com atos de colonialismo e dominação. Que instinto é este? E não podemos fugir do seu exameE se Deus de fato não existir? Será esta de fato a pergunta relevante? Vejo dois conceitos caminharem muito próximo: o de materialismo e ateísmo. Qual a relevância desta proposta? Excluindo as atitudes mais neuróticas, que transformam qualquer visão em fundamentalismo, a questão central deveria ser outra; sendo mais preciso - deveria caminhar na direção de nos olharmos como humanos. Quais nossas singularidades? Sabemos que somos herdeiros do Big Ban. Isto não é pouco. Esta ancestralidade me liga à história do próprio universo. Sabemos nossa condição de seres relacionais. Somos gregários. E principalmente, sabemos que sabemos todas estas coisas. Mas somos seres que possuem a mesma trajetória dos entes vivos: somos efêmeros. Somos realmente efêmeros? Se o único espaço em que posso realizar de minha experiência de vida é o agora, cada agora contém uma eternidade. A morte soe acontecer. "Todavia, toda vida é indagação do achado" (diz Drummond). Indagação do depois de agora. Daqui a 10 dias vence o aluguel. Não tenho como pagar hoje e não tenho perspectiva de pagá-lo no depois de hoje. Meu sofrimento do depois de hoje é agora. Por isto sofro agora com minha finitude. Desta forma me convém acreditar que sou infinito. Afinal uma série numérica é infinita! Porque eu também não poderia sê-lo? E se for assim vou vier agora minha eternidade: o pós tempo - o pós história. E é provável que o pós tempo exista. Pois se o tempo é, o é em face de do não-tempo. Ou seja, posso aliviar agora meu sofrimento com a vivência do não-tempo. De mais a mais a experiência do divino é em mim que se concreta. Este humano-divino é uma experiência real. Nela esta minha transcendência e minha imanência. E em todos os casos a pergunta inicial não faz qualquer sentido, porque equivale a perguntar - e se Deus existir? Este divino continua sendo uma experiência que se realiza agora, em mim e para mim.
A impressão que ficamos após a leitura de "O Existencialismo é um Humanismo" é de que Sartre, embora afirme em contrário, confere à experiência de liberdade de escolha uma dimensão divina; ele absolutiza a responsabilidade do humano singular, transformando esta escolha em um padrão de transcendência dos seres singulares para os seres "categoria". Sartre repete o tempo todo sobre a inexistência de uma natureza humana, mas impressão que tenho é que ele deixa de considerar as contribuições da antropologia, da psicologia social e da ecologia social. O conceito de Teia da Vida, presente na Teoria de Santiago (Maturana e Varela) nos lembra que a cognição é uma propriedade da vida; que existe um padrão de rede desde as micro-particulas até os conjuntos mais complexos. Um padrão que é anterior ao próprio surgimento dos organismos vivos. Um padrão que está presente na organização da matéria. Este padrão cria uma ética da ecologia profunda, onde a liberdade é a liberdade comprometida, mas a liberdade possível. Não existe outra forma de liberdade. A escolha é a escolha possível e condicionada por este padrão: pode ser a cultura, o inconsciente (Freud e Jung) e visão de classe (Marx). Sartre parece conferir demasiado valor ao cogito (Kant), deixando de considerar dimensões como a intuição nos processos de escolha. A intuição é uma experiência (como tal um fenômeno e uma fato da existência) que nos confere um sentido de certeza. É com base nesta certeza que faço minhas escolhas. Não me parece que haja um grau de liberdade significativo quando o que me movimenta é a certeza, resultante de um insigt.
Conhecer Sartre é conhecer sua motivação íntima: como esta responsabilidade que ele nos conta se constrói na história. Sartre sabia que existem pelo menos dois grandes filtros que balizam nossas escolhas: o inconsciente (Freud) e a visão de classe (Marx). O limite íntimo destas escolhas é que me parece estar em questão. Volto minha lembrança a Carlos Takaoka e a todos como ele que passaram por provações físicas e psicológicas profundas, como os prisioneiros de guerra, como Sartre. De todas as guerras. Nunca soube se o Takaoka era ateu ou não, se era materialista ou idealista. Naturalmente o Takaoka possuía forte influência de usa origem oriental. Falávamos sobre a natureza e sentido de nossas escolhas e do nosso engajamento político. Criticávamos as noções de necessidade (imperativos) histórica, como muito determinista para qualquer forma de liberdade. Então ele me contou o seguinte Koan (trata-se um dito ou ato de um mestre Zen).
- Um jovem monge perguntou ao seu mestre: O que é mais importante: carregar o Buda ou lavar os pratos? Ao que o mestre respondeu: O mais importante é lavar o Buda e carregar os pratos.
O pensamento ocidental é muito marcado por alternativas excludentes e o Takaoka me lembrava que uma ética assentada em escolhas excludentes era estranha para ele. Porque existindo ou não uma divindade a sacralidade dos humanos justificavam uma opção humanista. E este provavelmente foi o maior legado de Sartre. Novamente citando Drummond ele nos lembra em sua poesia nossas escolhas pessoais de uma ordem superior e justa. Mas são nossas escolhas. Ninguém nos obriga a isto. Nenhum determinismo da natureza ou da história, nenhum determinismo transcendental teológico. Afinal não existe nenhuma racionalidade a ser desvendada. Todas elas, incluindo sua falta, resultam de nossas escolhas. Não há o que decifrar. Existem apenas escolhas Mas parecem ser escolhas que dormem e às vezes acordam, no mais fundo de nossa intuição. No primeiro e último verso do poema Nosso Tempo, Drummond brinda-nos com estas palavras:
"Este é tempo de partido,
tempo de homens partidos.
Em vão percorremos volumes,
viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
as leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se na pedra.
(...)
O poeta
declina de toda responsabilidade
na marcha do mundo capitalista
e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas
promete ajudar
a destruí-lo
como uma pedreira, uma floresta,
um verme